segunda-feira, 19 de abril de 2021

Sobre o amor aos cães

Mesmo que o homem não fosse mais que lobo do homem,

Fera astuciosa como nenhuma outra;

Mesmo que fôssemos menos que imagem imperfeita dos deuses; 

Nem por isso os cães se demitiriam do cargo de pastores 

A nos proteger de nós mesmos.

Cães partilham até a maior pobreza do seu tutor;

Já nós humanos, por vezes arrebentamos afetos 

Com a mesma facilidade com que os tecemos.

Mesmo assim, penso que amar demasiado aos cães 

Só poderá destruir nossa fé nas pessoas

Se acomodamos nossa fera interior amuada, alimentada pela dor.

(Creio que os que dizem perder a fé nos humanos por causa dos cães, fazem um último apelo à humanidade)

Porque amor não é bola dividida, nem conta que deixa dívida

Afixada em papel ou registrada em cartório.. 

Dívida de amor é saudade.

Conta que retorna multiplicada: mais se ganha, mais se dá...

Quase todas as pessoas afetuosas e bonitas que conheço 

Estão irremediavelmente conectadas aos cães, gatos, 

E bichinhos de toda sorte ou proceder.

Ao que eles devolvem prontamente: 

Sem pedir licença, antecedentes, ou fazer cobranças sentimentais.

(Mas não me curam pelo amor que não sinto)

Apenas que sua entrega perseverante assegura que todos os dias 

Possamos, por um instante, suspender torrões de amargura.

Isso já é muito, ora bolas! Mas bicho não é apetrecho nem santo milagreiro, 

Estar-com-eles é, naturalmente, labor dedicado.

Quem esquece isso, arrisca-se a abandonar seu bichinho amuado num canto da casa. 

Ou pior, a qualquer hora deixá-lo na rua, sem mais, e perdê-lo para todo o sempre...

(Do mesmíssimo modo com que perdemos amigos e bons sentimentos)

As vezes eles sentem um medo difuso de coisas que nem sempre entendemos. Especialmente fogos e trovões.

As vezes até nos mordem quando acuados. Pra depois virem felizes brincar com a gente como se nada houvesse.

E engolem as coisas mais inacreditáveis. 

Mas quem foi cuidado por um cão, soube o quão incríveis são;

Quem os levou pra passear aprendeu o que é encantamento dos sentidos;

Quem teve o amor de dois, sabe o quão diferentes e caprichosos são.

Que eles nos façam sentir extraordinários.

Mas a segurança de domínio pelo fascínio que sobre eles exercemos,

É só um  fantasma de amor.

Quem dera nascessem cães que não morressem nunca, 

Ou que no céu corressem em doce caos celeste.

Mesmo que intensas suas vidas de coceirinhas, saltos, 

Escavações, lambidas, odores, mordidas, patinhas despudoradas e latidos estridentes, 

Ainda acho injusta essa morte tão precoce...

domingo, 4 de abril de 2021

Páscoa


No primeiro dia da semana, de manhã bem cedo, as mulheres levaram ao sepulcro as especiarias aromáticas que haviam preparado.
Encontraram removida a pedra do sepulcro, mas, quando entraram não encontraram o corpo do Senhor Jesus. Ficaram perplexas, sem saber o que fazer. De repente, dois homens com roupas que brilhavam como luz do sol colocaram-se do lado delas. Amedrontadas, as mulheres baixaram o rosto para o chão, e os homens lhes disseram: " Porque vocês estão procurando entre os mortos aquele que vive?

Lucas, 24, 1-5


 

Somos um pouco filhos da pascoa!

Desde há mais de dois mil anos quando um homem morreu,

Partilhando esperanca e redenção.

Mas não penso que a redenção se deu mediante o "perdão dos pecados": 

"Noticiam os jornais celestiais: Extra! Extra! Humanidade é finalmente premiada após a morte,

Precedida de traição e tortura aos 33, 

De rapaz mui destemido, sábio e distinto, além de filho dum ser influente."

Parece fake news da imprensa marrom...


Esse filicídio, se existiu para bom destino,

Foi para que nos perdoássemos quando perto do impossível - para além de uma religião em particular.

(Porque aqui se encontraram ou não, outras crencas e seres feito caboclos, guias e orixas?!)


Esse Cristo deve de ter vindo para que, quando absolutamente impossível,

Não nos reduzíssemos à vingança.


Tudo começa quando termina,

Com um pai todo poderoso que deixa morrer seu filho em agonia.

Para valer o sacrifício, precisava que esse crudelissimo ato inaugural se renovasse e se transformasse em outra coisa. 

Foi preciso que esse ato do pai recuasse, dando lugar a promessa e biografia do filho.

Nos encadeando infinitamente, após a partida do Deus-Filho em carne.

Que aprendêssemos a morrer e a nascer em vida, várias vezes;

E que o véu que "me" separa de "você" seja enfim rasgado.


Os herdeiros da cristandade são mais que filhos da morte - mesmo que a de um "santo"...

São também nascidos do breve retorno luminoso após a cruz. 

Núncio transbordante da vontade de vida;

Que toda forma de carinho empatia reabilite a realidade e demita a melancolia.


A Páscoa reúne chocolate, cristãos, judeus, vinho, ervas, pão, amigos e parentes; coelhos que botam ovos, carneiro, oração, jejum e moqueca. E nem todas essas coisas precisam, podem ou devem ser comidas.

(E ainda há tantos que têm fome)

Mas se tudo isso pode ser reunido e consagrado,

O almoço à mesa só trará a alegria devida

Se forem mais amados os que conosco se alimentam, do quê o que é consumido.


Deuses e orixas, encantados são tb algazarra de vida; abundância e fertilidade das coisas mortais.

Não o silêncio do sepulcro, etéreo distante,

Ou vingança na morte. Porque se a morte é-com-a-vida, ela não é razão de viver.

E a morte desse Deus deu vida a uma confiança que emancipava escravos e trazia o senhor ao arrependimento.

Que todas as correntes se quebrem. Que o opressor seja derrotado.

Porque todos deveriam ser reunidos na mesma paz.

Ah se Ele soubesse o quanto seu nome seria usado 

Para escravizar povos e fazer senhores orgulhosos pelos sofrimentos causados....


Abandonai a tudo disse Ele, menos o amor por tudo.

Abandonai a tudo, menos o compromisso com tudo.

A cruz é para que não a tragamos mais como desculpa ou arma.

Abandonai se preciso até mesmo a cruz, quando ela servir mentira e maldade.

Mas não percamos a lembrança da opressão que ela acusa.

(Hoje podemos decidir não sermos os erros de ontem!)


Não tive melhor sorte. Minha alma de ateu também sentiu o pecado que me acompanha,

Mas sou ateu dos mais crentes que já vi.

E adicionei o sagrado, ao meu modo, no interior da minha própria forma de ser.