quinta-feira, 16 de dezembro de 2021

Manhã de Natal


"Por que nós nos alegramos em um nascimento e choramos em um funeral? Porque não somos a pessoa envolvida."

                     Mark Twain 



Manhã de Natal, antes do café. O dia clama pelo Especial de Fim de Ano: Solstício de Nazaré.

Já sem pressas, passas, figos ou rijos rituais... Agora sim, nos entreguemos às saturnais.

Alguém na casa acorda mais cedo, abre armários e geladeira, prepara rabanadas e anda pela sala à remexer presentes ao pé duma árvore de plástico vinda de país distante. Entre enfeites de esferas, guirlandas, sinos e bengalas bicolores, harpas, flocos de neve, laços de fita, sapatinhos de pano e papel, estrelas e encantados, candelabros e, alhures, animais, nos perdemos. Os especialistas dizem que os tons verdes, carmesins, chocolates, rubros, brancos, vinhos, dourados, prateados e escarlate, isso tudo recheado com muito glitter será a tendência de cenário desse início de verão - assim como de todos os passados abaixo do equador. Pessoalmente sempre adoro, hipnotizado, as luzes que brincaram de piscar noite inteira.

Mas voltemos um pouco no tempo...

Mal começara dezembro, e resgatamos caixas empoeiradas em fundos de baús dos festejos passados e, o que faltar, compramos de novo na Av. Sete, Barroquinha e Baixa dos Sapateiros - aqui "ninguém  é menino". Não há festa mais Made in China que o Natal.

Mas tomado por velhos espíritos natalinos, é como se eu ainda tivesse saudades de coisas que não vivi.  Tambores de pele e madeira, fogos e céus estrelados; saudades de silêncios e velhas charneiras. Serão atavismos fetichistas que em mim guardo?

Todavia, ao invés de abater um grande peixe, res ou fera nos liames verdejantes da floresta arteira, como fizeram por séculos  nossos ancestrais, nas vésperas da ceia nos arriscamos, todo ano, heroicamente entre perigos de empórios e Shoppings Centers, essas modernas selvas para caçar presentes.

Lutamos ferozmente: primeiro, com os dilemas sobre o que dar à quem; depois, com as atrozes contas: se faremos à débito, pix, papel, escambo ou cartão de crédito - a difícil escolha das armas; em seguida temos de brigar, brandindo punhos e imprecações por uma vaga no estacionamento abarrotado - quase diria, uma vaga no inferno; e, após tudo isso, lembrem, precisamos ainda sobreviver à caça mais astuciosa: lutar e vencer vendedores, dores e falsas promessas, lançando feitiços e percorrendo quilometros por horas em busca da temida e cobiçada lista! 

Isso tudo, veja bem, em meio à multidão furiosa e sanguinolenta querendo mais. 

(Mas altaneira; quase fofa, e excitada de encantamentos consumeristas) 

Pra finalizar, temos de montar cardápio e comprar ingredientes. E se os deuses, deusas e o clima do planeta ajudarem, quem sabe na Ceia entregaremos um prato minimamente decente.

Vamos a ela?!


Não sou fã da hora da ceia... Esse texto é mais sobre os doces atentados à tristeza que ocorrem depois dela...

Mas vamos lá...

Dia 24, clima de festa, muitos afetos e alegria.  Procedimentos tecno-mágicos meticulosos são aplicados para que os pratos fiquem à contento; faz-se multirão de limpeza, ocorrem as compras de última hora, garante-se a segurança para que meliantes pets e humanos, gulosinhos, ansiosos e indisciplinados não desfalquem antecipadamente ingredientes. Enfim, muita agitação e função na cozinha e casa como um todo. Todos compenetrados em seus papéis na missão - inclusive meliantes humanos e não humanos. Muita apreensão e euforia se misturando, mas não vou mentir, bem me lembro: à noite, depois de tudo, caí em pecado.

Foi aí que abracei o capeta! No momento mesmo em que disse pra mim: "Sabe de uma, Eu mereço!"

Tomei uma gelada com queijo cuia, porque ninguém é de ferro né? ! Hummmm... 

Daí o bicho pegou! A gula e o vinho... Fofocas, a vaidade, sincericidios etílicos, eróticos - luxúria - e poéticos, além de impaciência e preguiça... Tb inveja dos presentes dos outros, medo de ter gastado em excesso e receber presente "péba" - avareza - são o maior normal nessa hora de amor profundo. Inesquecível que nem unha encravada com sapato apertado... 

Na moral, foi ladeira abaixo...

O movimento é  sensual, ostentação é a parada... Devagarzinho até embaixo...


"Na real"?! Acho que o soteropolitano não curte lá muito o Natal.

(Dizem por aqui tudo vira Carnaval, e tem uma hora em que o povo alopra geral, decide levar até de manhã - inclusive, atrapalhando a invasão domiciliar noturna de Papai Noel -, e começa a confundir o velho Santa Claus com Bel do Chiclete, Ivete ou até Carlinhos Brown)

Se ligue "miserevê". Pegue a visão. Tá "vacilano"?

Meia noite, Missa do Galo, todos em pecado, há-pagão geral?!

Essa coisa de energia de que fala a "galera-coelba" do esoterismo, não é mentira não. Rola mesmo véi...

(Mas somos só limitados humanos e, tanto que, também tanto amamos, "na vera" mesmo e "de-com-força")


Belém blem blem pra gente!


E anote ai; Quero meu momento íntimo com o Cristo-Noel velho-criança gorduchinho que nasceu.

Na manhã do dia 25, quase ano bom, subirei telhado para admirar a Cidade, mesmo que ressaqueado e peidando à chester com frutas cristalizadas;


Mas se ligue "minha pedra", se vc achou que até aqui foi chato, se prepare, porque agora vem aquela parte existencial chata pra caralho do texto em que eu choro "e as porra". 

Sem falar do embaraço que pode se tornar pra esse povo "esnobe que nem eu" - acadêmicos de esquerda das humanidades, e de pouca fé -, confessar esse crime hediondo, esse amor quase cafona e sentimental pelo Natal...

Mas se chegou até aqui, te desejo força guerreira(o) que me lê! O texto é exagerado mesmo; verossímil, mas um tanto ficcional também, muito de classes médias nele, às vezes kitsch, mosaico beeeeemmm colorido de coisas aparentemente desconexas, que nem Natal mesmo.


Muito bem...

De longe a cidade parece gospel papel.

Eu até atrevi do dia a imagem,

Presépio astuto de beleza e crueldade...

Quisera eu fosse um passarinho;

Sou sonho agitado.

Após fitados e fatiados que nem panetone todos lugares ermos e ninhos, sofro só de imaginar tudo que a vista não alcança.

A data remete ao fluxo de morte, vida e renascimento, de reconhecimento de si e recíproco diante desse movimento incessante; desse acertar as contas com a gente, e nos dar conta francamente da difícil engenharia entre o que queremos, podemos e precisamos. Mas também do que demandam da gente.

(Será por isso que os Três Reis Magos encontraram em meio à noite no deserto o Messias Pequenininho? Perseguindo o impossível?)


Em meu divã não há colirios, cirios, nem coleiras, apenas flores, espinhos, algumas lanças e pederneira. Mas tb há dança e carinho no cadinho.

Meu divã é estômago, estrago que arde e quer vinho. É a cidade com todos nela e suas maravilhosas navalhas dos anjos e diabinhos, com Jesus Menino protegido a nos proteger dos perigos da manjedoura imóvel. 


Ah quantos presentinhos de Reis ainda há de nos dar a memória... 

Dar e receber presentes é o que tece a paz e amor universais entre as gentes.


Há sol, espreguiço ante o espelho em Mi bemol.

É quase janeiro. Sinto-me tolo feito Noel que não soube ler a escritura dos tempos nos versos alheios. 

Não pude dar o que queriam. Alguns sapatinhos ficaram frios e vazios... Talvez alguns presentes tenham sido trocados, extraviados ou roubados, quem sabe... 

Meu papel aqui pouco tem a ver com a verdade,

Mas com os muitos possíveis muito além da minha inútil medida.

Isso talvez tb seja a tentativa de converter nossa miséria em arte.

Salvar pelo sonho minha pífia cristandade?


Só sei que o café que ontem à tarde ardia, agora esfria. 

Por onde irá aquela que outrora foi tão boa companhia?

Alguns estão nesse momento celebrando alegres com aqueles que momentos atrás repudiavam.

(Pessoas raramente "decepcionam")


Acendo luzes e velas e, ao meu modo, também celebro.

Bela ceia bom barqueiro, cantarei todo aquele que tb quiser celebrar, e me celebrar, independente das dinastias desse longo mar.

Há muito amor num mundo que tb é mentira e dor.


Ainda te mando mensagens em garrafas ao mar, e recebo as tuas, com desejos de danças e dias risonhos.

(Para nós, nada menos que o melhor)

Ano que vem não virá de novo o fevereiro e, como não farei anos, não ficarei mais velho dessa vez.

Farei apenas uma canção de amor pra esperar a volta da alegria. Isso não é a periodicidade necessária do Natal?! Essa festa tão cristã quanto pagã?!

(Um dia farei amor com ela)


Mas o ano que finda não aconteceu nem acontecerá ainda.

Tive dias duros e escolhas complicadas. Não me iludo. Nesses dois últimos anos talvez tenha perdido mais amigos, parentes e até mesmo sanidade e conexões afetivas que nos 10 anteriores. Muitos perderam muitas coisas, e nem sempre é fácil encontrar razões pra continuar.

Morte, finitude, perdas e renúncias compõem a própria possibilidade da vida.

(Mas voltemos à leveza, por favor)


Ahhhh, resgatei o Natal já mais velho e cascudo numa casa em que "o negócio é sério"! Rabanada e biscoitos, nozes e chocolate; panetone salgado tostando na chapa de manhã com queijo cuia e apresuntado. Tudo partilhado, tudo me liberando pálpebras, papilas e pupilas. Se tem criança, melhor ainda! O riso solto e resenhas, presentes e pilherias pra trocar. Quem mais gostou do quê, vamos confessar... As vezes há promessas e acidez estomacal na balbúrdia da mesa quente da cozinha. Alguém bebeu demais, já deu dez de relógio, mas não descola da cama - houve dia em que fui esse tb... Quem têm Magnésia Bisurada, Novalgina ou Sonrrisal?  E a depender da família e das besteiras que fizemos, vale o combo: Magnésia+Engove+Rivotril né? 

Aquelas canções de melodias agridoces, meio alegres, meio tristes, falam de neve e bonecos de neve, pinheiros, frutas, comidas, lugares, objetos e seres que em sua maioria nunca vi, mas que a mim parecem íntimos desde sempre. Esse doce folclore que veio do norte. E há quem goste mais, quanto mais as fantasias saem jazzadas da fornada musical.... 

(Tudo bem, o vermelho vem da Coca Cola e a Finlândia só embarcou nessa pra atrair turistas)

Quase vou com tudo nessa lúdica viagem transcultural.

Mas não posso me enganar, esquecer. Nesse ano em particular há quem não tenha pão, paz e, muito menos queijos, presentes e vinhos para partilhar.

Mesmo assim, se é manhã de Natal, presentes espalhados e sobras da ceia perfumam e colorem especialmente a casa de quem teve o privilégio da mesa inteira.

(Seria fácil me culpar. Prefiro lutar  pra que todos possam ter)

A família que temos, aquela a qual confiamos nossas mãos, é a medida mais imediata da celebração. Mas há tantos outros que tb importam... E tantos que já se foram...


Nessa manhã há sol longo e lento, e galos conversando, convocando em alto som o novo; tudo faz tudo mais especial nessa euforia em movimento...

Para os galos seria só mais um dia – exceto porque para eles, galináceos, nesses ciclos festivos aumentam as chances de tombarem nas assadeiras de todo o mundo.

Galináceos do mundo, não uni-vos!


Porém, se Papai Noel - São Nicolau - não existe, por certo é a ficção mais influente e lucrativa do planeta. 

Bom Velhinho vermelho e barbudo youtuber, nunca me esqueça. 

Ai que mesmo depois de adultos continuamos a esperar seus presentinhos, quem sabe pedidos em "amigos secretos" - esse Papai Noel para crianças crescidas que nem a gente.


As más línguas dizem, rolaria até certa treta com o tal Jesus do morro vizinho, o homenageado mais velho, filho do homem, cordeiro do mundo. Mas pra quê tudo isso!? Deixa os caras trabalharem juntos: pagão, moderno, antigo e cristão. Tudo em prol e em paz, compromisso pela comunidade... “É nóis, tamo junto! Comunidade sempre! Os dois representam!” 


Enfim, na infância tive de acreditar nele Noel até mesmo pra ganhar presentes, ora bolas... complô planetário poderoso como esse nunca se viu... 

(E como foi bom ter sido assim enganado)

Hj quando me enganam, logo descubro que tive cartão ou celular clonado!


Adulto, compreendi, Papai Noel agora sou eu. Acho que já li algo assim. Desculpa o plágio. Esse encantado já mais humanizado talvez nos permita uma identificação que seria mais difícil de realizar com a espartana figura do Cristo em fuga, nascendo numa gruta em meio ao rude deserto. No Natal, talvez queiramos, atualmente, só podermos fugir dos desertos que por vezes têm sido nossas próprias vidas. 

O Noel que conhecemos foi inspirado num bispo do século IV da Turquia que distribuía sacos de dinheiro aos necessitados. Um provedor, protetor caridoso, cuidador cristão-burguês quase asceta e celibatário, mas apenas quase... Porque na composição de sua função de colo e relaxamento diante das durezas do trabalho e cotidiano, inventaram uma Mamãe Noel que, aliás, é frequentemente sensualizada nas lojas no fim do ano. Além do quê, o Papai parece eternamente sorridente e moderadamente embriagado - diria, de vinho... 

É como se tudo correspondesse à composição contemporânea de uma vocação pública adequada ao instante festivo extraordinário, necessariamente efêmero e esperançoso de um mundo melhor que não se realiza; senão que, periodicamente, em ato-memória se performatiza-ritualiza-teatraliza. Composição regada a um desregramento moderado similar ao que geralmente nos oferece o consumo recreativo. 

(Mas o sociólogo deve parar por aqui)

Enfim, digo que o Noel sou eu porque, entre outras coisas, bem sei que ando meio de saco cheio, tô mais gorduchinho, me forço às vezes o sorriso por quem amo, me sacrifico e trabalho por desejos que não são meus. Conto ficções pra acalmar e peço ajuda aos "anões" que me salvam todo dia. Preciso trabalhar, senão não haverá presentes. Mas derreto ao sol escaldante de fim de ano nos trópicos sem renas ou trenós pra me carregar, me espremendo pra entrar por passagens que nem sempre me cabem, muitas vezes sem ser desejado, e de onde às vezes saio sujo e empoeirado. Sem falar das vezes que não gostam dos meus presentes e mensagens...

Meu pedido: ser melhor Noel esse ano, do que no que passou - só pra que me façam ainda mais e mais gorduchos pedidos.


(Deuses estiveram aqui e me falaram contos de fadas, emprenharam meus ouvidos de risadas e gostei. Eu vou te contar tb)

Dizem que lutar com palavras é luta vã.

Todavia, se sou incapaz de ferir ou matar,

Tb já não sirvo pra rezar.

Mas se algum deus é Amor,

Seu profeta é poeta.

Sua "bíblia", poesia:

Que queime no inferno toda hipocrisia. 

Deuses falam comigo preferencialmente nas manhãs, todos os dias.

E eu que não sou ninguém, vivo à revelia.

quarta-feira, 15 de dezembro de 2021

Natureza


Nossa contrariedade, por onde anda? Ah, nossa contrariedade nada importa.

Apenas importa o jardim que a mão comporta, mesmo se dói demais.

Nossa vontade, pouco faz.

A dança da natureza é a mesma, nem justa nem injusta.

Ora singela, ora bruta com o vento, pedra e, todos nós, animais.

Disse o sábio sapo: seja como o queijo! Seja o queijo!


Ser intenso --  palavra charmosa para qualificar ansiosos e vinhos -, é viver esticado que nem queijo esquentado na desmedida: entre acordar com desejos e planos como se o dia tivesse mil anos, e à noite ir pra cama como se não fôssemos acordar nunca mais.

Mas o importante mesmo é: no café da manhã, não sejamos a "peçoa" que ficou sem o último pedaço do queijo de verdade, nem aquela que o comeu.

Nessas horas, entre pecadores gulosinhos, ai, ai tragicômica vida... A coisa fica séria, ninguém é de ninguém... E pouco importa o dia de hj ou o amanhã... Evaporam-se os grandes planos. 

Apenas aquele delicioso e efêmero pedaço de queijo cheirando tostadinho na chapa pode dar o verdadeiro sentido da vida.

terça-feira, 30 de novembro de 2021

Adeus Paulão (homenagem póstuma à Paulo Roberto de Sales Ribeiro, àquele que por tantos anos foi o meu sogro)


Minha morte nasceu quando eu nasci.
Despertou, balbuciou, cresceu comigo...
E dançamos de roda ao luar amigo
Na pequenina rua em que vivi
.

                                      Mario Quintana

 Non videmus manicae quod in tergo est

O que fica da vida, da passagem de uma pessoa pela nossa? Existiria uma coisa feito o destino? Haverá a hora certa da partida? Como e quanto se lembrarão da gente? 

Hoje tudo ficou confuso, o mundo desabou. Como se não tivesse havido um fim, mesmo depois de o fim ter sido decretado, fosse pela aridez da natureza, pelas faces quebradas, rituais de despedida ou relatórios médico-periciais. Tudo dizendo "acabou", enquanto, simultaneamente, éramos tragados pela presença do que se fez ausente. 

Revivemos várias vezes os eventos, procurando por erros e respostas... queremos um sentido e, quem sabe, algo que ajude a expiar qualquer culpa ou remorso. E há Tb quem deseje esquecer. Mas será que "esquecer" não é só um nome diferente para o que mudamos do que ficou?

Gostaríamos de voltar no tempo... 

Mas é impossivel e, pra seguir, vamos redecorando escombros e pintamos a sala de "estar-bem",  enquanto o passado permanece tão misterioso quanto o futuro, como se os momentos todos se misturassem.


Paulão, como era chamado pelos chegados, era o tipo boêmio boa praça, não gostava de polêmicas esticadas, nem apreciava grandes refinamentos intelectuais. Tímido, falava pouco e em geral tinha um sentido pragmático, mesmo que muitas vezes tradicionalista, a respeito de suas ações e existência, mas falava e lidava com todo mundo. Era um sujeito simples tb nos gostos, e gostava de seguir regularmente suas rotinas. 

Era à moda antiga: devocionalmente religioso de um catolicismo sincrético e piedoso, herdeiro de uma Salvador de redes familiares e vicinais extensas, e que já não existe mais. Paulão acreditava, um tanto aristotelicamente, que o ser das coisas as destinava aos seus lugares predeterminados na sinfonia do mundo, assim como acreditava que qualquer palavra empenhada em praça pública valia mais que documentos assinados e registrados em cartório. No mais, para ele a beleza habitava o simples. Era o tipo que ainda acreditava ingenuamente, de uma ingenuidade bonita de se ver, e cada vez mais rara. Do que pude conhecer, isso resume em boa medida a sua "filosofia". 

Hj Paulo nos deixou. 

E hj, peço desculpas a ele por trair seu legado.  Hj. não acredito, não há paz, mas desilusão. Amanhã acreditarei, mas hj não. Quero ser triste e praguejar contra o sistema, e toda essa des-humanidade. Hj. sinto raiva. 

Paulo não vinha lá muito bem fazia tempo. Não era mais o mesmo de anos atrás. Parecia cada vez mais frágil e cansado, e um tanto triste às vezes. Acho que a pandemia o quebrou, como a muitos. Mas "tenho pra mim", ele gostava de viver.

 Estamos tristes.

Não que fôssemos os grandes amigos pra sempre, nós dois, isso não aconteceu. Éramos, de certa forma, incompatíveis até nos times, roupas e cervejas. Talvez o afeto mais intenso, mais profundo entre duas pessoas necessite de uma estação propícia de cultivo. Acho que não foi nosso caso. Mas nossas diferenças nunca impediram o convívio respeitoso e o desejo pelo bem um do outro, pelo bem recíproco, havendo por vezes pequenas rusgas por certo, mas tb auxílios gratuitos de parte a parte, e até momentos de verdadeira camaradagem, sobretudo em festas de família. 

Convívios longos costumam nos alertar demais para defeitos dos outros, e nos anestesiar para os nossos próprios. Ele, humano filho de Deus, tinha os dele; eu, os meus... E não posso esquecer, o recém chegado era eu; ele, o pai da moça! Ele,  quem me recebeu na família à qual devo tantas lembranças felizes.

E, em momentos como os de agora, sempre fica um vazio, deixa tristeza, e a dor maior que atingirá a outros nos machuca por tabela. À cada um caberá viver seu luto como for possível, e isso às vezes é solitário. Luto é tb cuidar dos vivos. E quem puder, por favor, abrace, se abracem. 

Perdemos o manual público do que fazer nessas horas quando decidimos, civilizatoriamente, pela liberdade. Liberdade para até mesmo não acreditarmos sequer em Deus, deuses, rituais, ou qualquer algo de eterno. E em tempos de positividade tóxica, celebração do corpo sarado, fotos no Insta e juventude eterna, adoecer e morrer e, pior ainda, falar da morte e do morto - essas palavras tabus -, tudo isso bem pode ser visto como sintoma do derrotado; maceração mórbida, inútil e dispendiosa. 

A morte é injusta, terrivelmente dolorosa. Às vezes queremos não pensar, dar um basta em nossa própria dor da perda - e, claro, chegará a hora em que isso precisará acontecer.  Mas penso que silencia-la apressadamente mediante decreto, seja por medo, repulsa ou qualquer razão, pode ser perigoso.


Um dia, isso têm anos, namorávamos torridamente, eu e sua filha, deitados no verão da varanda do saudoso Village de Lauro de Freitas, o mais antigo. Paulo nos flagrou acidentalmente, e só eu o vi. Gelei e pensei que fosse morrer naquele dia: de bala, susto ou envenenamento... Era início de namoro... Paulo, assim como eu, fingiu que nada viu. Nada nos disse e seguiu vida. Continuou me tratando como sempre... E eu, devolvi alegre e aliviadamente o presente. Talvez ele fosse menos rígido do que dava a entender em sua timidez sobre essas coisas, não sei dizer muito bem. 

Enfim... Paulo estava mais pra pacificador, era da turma do "deixa disso". E, muito menos, alguém o imaginaria levantando a mão pra ferir qualquer pessoa.

Ele era o tipo de figura do bairro que não brigava com quase ninguém, prestativo e negociador, urbanoide corretor de imóveis, caminhante da orla que todo mundo conhecia e cumprimentava, uma espécie de "monumento", discreto sem dúvida, ou presença local do aprazível Costa Azul. Acho que ele adorava esse bairro e, pelo que sei, vinha exercendo sua corretagem quase que exclusivamente dentro dele nos últimos anos. 

Muito bem, enquanto que após o lamentável afastamento forçado, tempestuoso e imprevisto ocorrido em maio de 2021, eu tinha “de certeza” que logo nos veríamos, a vida tramava pelas nossas costas suas próprias prioridades, e antecipava nossa derradeira despedida. Porque, estando em outra cidade, não pude sequer me despedir ou acompanhar o que seriam seus últimos dias. Só me restou escrever, e me consolar com esse texto póstumo como fosse nosso funeral e vigília, minha e dele. Nosso adeus possível. 

Em toda partida haverá um pouco da gente que se vai. Penso, seja uma troca. Quem nos deixa exige, como condição de doação mnemonica amorosa, levar um pouco de nós: mais nos tira, quanto mais nos dá... E a cura da perda não tem receituário. Trata-se muito mais de cafunés, paciência, conchinha e afagos, e tb de nos contarmos histórias sobre quem se foi, até irmos desapegado enquanto reelaboramos a perda aos poucos. Isso a que se chama luto. Porque narrar é dar colo de palavras... É dengo do tempo do verbo.

De resto, terei daqui pra frente que "vê-lo" pela porta da memória do quarto da suíte do Icaraí. Quarto esse em que costumava ficar em frente à TV, sobretudo nesse tempo de pandemia, e onde adorava assistir seu glorioso baêa. Mas prefiro ainda sua imagem ao volante quando íamos para o Village, e se faziam aquelas compras gorduchas. Paulo, nessas ocasiões, nunca aceitou qualquer contribuição minha. 

Era perigo de segurança e saúde públicas na cozinha; mas era massa ver seu gosto por pizza, comidas festivas como queijo cuia - o chamávamos Dom Ratão, a propósito dessas horas rs - e música, inclusive Roupa Nova e The Beatles...  Sim, ele gostava de cantarolar! E tinha especial afeto pelas crianças - chorava emocionado, copiosamente, aquele homem quieto e convencional, assistindo The voice kids. Além, é claro, dos seus bordões engraçados pra caramba. Ou como no dia em que fomos a um templo Mahicari, e que eu, pesquisador da religião, não conhecia; e mesmo quando ele sorria estridente em conversas com seus amigos mais chegados. Tb adorava perfumes, Globo News e, com o passar do tempo e acontecimentos, se tornou, para nosso orgulho, e desespero de muitos dos seus amigos, um anti-bolsonarista ferrenho e convicto. Da mesma forma, quando Paulão gostava de uma coisa, repetia até "furar o disco"... 

Agora, os objetos por ele utilizados solicitam em vão sua presença - seu toque e olhar, sua pressão muscular, calor corpóreo e ordenação motora únicas, essa impressão digital do corpo que faz ranhuras e morsas indeléveis nas coisas; seu mana, energia vital singular, sua aura. E todas elas, coisas, tb desaparecerão ainda cheias da esperança de que um dia voltariam a corresponder a demandas humanas, enquanto coisas úteis, necessárias e desejadas por ele, para ele.

Não tenho palavras, imagens ou procuras suficientes nessas horas. Acho que nunca saberei dizer adeus, talvez por ser homem de pouca fé. Só acredito no que ainda podemos fazer, e o adeus é  uma desistência compulsória daquilo que ainda não foi. (Num duplo sentido: do que ainda não foi completamente embora, e do que ainda não aconteceu, do que foi apenas potencial futuro). Mas eu quase sempre quero apostar que podemos fazer melhor numa próxima vez nesse mundo. Temos tudo ainda e tanto por fazer. E há remorsos. 

Escrevi noutra ocasião, "não nos culpemos por sermos feitos pra sentir... Ser de carne é também falir..." E antes que a corda arrebente, não esqueçamos do espaço em que se guardou leveza. Amanhã a tristeza há de ir.


Já nossa derradeira despedida, minha e de quem me lê, posterguemos, como se diz, todos os dias em que continuamos, até vivê-la num brevíssimo. 

Espero, sinceramente Paulão, que teu caminho de agora seja mais sereno e silencioso, porque aqui entre nós tá uma tranqueira dos diabos, esse tempo de tantas despedidas injustas, tantas dores. 

Toda memória pode ser também um tanto de esperança e imaginação para que se façam mais amenos os dias vindouros. E, se Paulão não estará conosco nesse Natal, estará por certo em nossas memórias e, num mundo melhor com certeza, para os que acreditam, como ele tanto acreditava.


Bem diria Paulo: a vida às vezes é só um "chute na canela"...

segunda-feira, 22 de novembro de 2021

Eu queria ser feito de música

 

"Onde há música não pode haver coisa má."

                                 Miguel de Cervantes.


A música é arte intrigante. Quando nos fixamos em um ponto, ele já não está... 

É arte do tempo. Arte heraclitiana do movimento das corredeiras e dos rios sempre "outros do mesmo", presente evanescente, revivescente incansável. Voz do impermanente. Daí vem toda sua magia comunicante com as coisas do mundo pelo mover cadenciado dos ritmos que, pelos guias da natureza, nos solicitam... Essas belas cartografias de gratuidades: da natureza das coisas; das coisas da natureza. Porque há, desde o ritmo lento do sol e da lua, dos anos e estações, até o ritmo e o som do bater do coração, das topografias, e na menstruação. Também nas asas de um inseto, beija-flor ou morcego, bem como nas divisões das folhas germinando, ou nas moléculas e fenômenos de multiplicação em escala celular. Ha ritmo nas pandemias, e há ritmo nas ondas, marés e seus marulhos, nas gotas de orvalho escorregando do telhado, o ritmo e melodia dos passos de um cão, da respiração, da marcha de um homem, formiga, elefante ou gato; do canto de um pássaro, baleia ou cigarra, do entortar pendulado de uma árvore pelo vento. Eterno retorno movente,  há ritmo até no mastigar do alimento e cariar dos dentes; música desse leva e traz das tempestades, das mortes e nascimentos. 

Mas, principalmente, há som e fúria em tantos engenhos humanos capazes de integrar as ações de um eu e um tu, realizando-se por um estranho milagre, um nós. Há música na voz e na preguiça. E, se algumas soam mais sonoras, há sempre tramas e canduras. Há música no amor entre duas pessoas que se querem, mas também entre as que se repelem. Porque há música até mesmo na guerra e terror, nos funerais e panelas, nas liturgias e litogravuras, ou na maldade opressora; no trabalho, no vai e vem do sexo de todos animais; há ritmo e música nas refeições, nos ciclos dos impérios e civilizações, nas rezas e cantos dominicais, nas giras, candomblés e carnavais. Há música nos sonhos, essa música em imagens, quadros borrados e até medonhos, de invaginações; mas também na eletricidade, panelas, ruelas, mandalas e nas velas; nos gases, beijos, trovões, sinais de trânsito, modas, nos mercados, capitais, jornais  e nos ciclos medicinais.

Não por acaso, a própria música foi a forma artística mais esquecida sob escombros e ruínas dos povos... Quem sabe o que foi a música persa, asteca, hindu, tapuia, suméria, núbia, ou iorubá de 600 ou 5.000 anos atrás? Isso atordoa e fascina meu juízo de fantasias melodiosas e estranhas aos meus ouvidos... 

E há uma música interior das profundezas do espírito, que sem dúvida também precisa ser tocada. Mas gosto mesmo é dessa galhardia gargalhada gostosa do corpo solto que, quando forma de arte, é dobradiça de mundo. Música é a única coisa quase tão intrigante quanto o silêncio; arte que comunica sem palavras ou descrições primorosas o milagre da vida em acasalamento. Os gregos acreditavam que a música era divina, e daí os pitagóricos extraíram dela toda a matemática. E quem ouve uma música, talvez tenha a solidão curada ao se encontrar no espaço comum de feras, humanos e anjos. Êita que é bom demais esse dengo nas orelhas, barulhinho bem planejado... 

Música é terapia contra a morte precipitada, e a dança, esse “mal” súbito que acomete o corpo emprenhado de afecções dormentes. No princípio não era o verbo, mas a música. A música e a dança, sua fiel escudeira... Deus primeiro escutou ritmo, acordes e melodia de criação... Depois, Deus dançou... E depois, só bem depois, muitos bilhões ou trilhões de anos luz depois, distante lá longe no beleléu após a curva do cansaço extasiado, como quem acabou de fazer amor e, já contemplando o céu povoado de pirilampos que o prostrou, o velho se ocupou em falar com voz grave, rouca e profunda... E espalhou sermões, liturgias e imprecações pelo mundo... Talvez estivesse apenas só e com saudades dos velhos tempos em seu santo ativismo publicitário...

Eu ouço música como um bicho carente que aprende a voar. Como se me tornasse luz de repente, e toda dor e dúvida fossem embora. 

Escutei um dia certa mensagem, vinha voando pelo ar: "não tenha medo, saia daí de dentro e venha brincar." Às vezes fica mais fácil se aumento o volume até silenciar a tristeza, até reverberar em corpo; outras, gosto bem baixinho que nem sibila sussurrando em meu ouvido tal qual vinho velho, longe do alvoroço.

Eu queria ser feito de música! Acho que seríamos imortais se tomássemos parte nessa sinfonia de sons tropicais. Quero que cante feliz, de olhos fechados, a música que cantávamos juntos quando eu me for; a mesma música que já não toca mais, mas que se esconde por detrás lá onde a vida perdura.

domingo, 21 de novembro de 2021

Semelhanças e indiferenças


Já não sou rancor nem arrependimentos.

Culpa, muito menos.

Bem sei que há sóis e luas;

Mas ainda sofro de peçonhas emocionais.

(Não dizem que é pra isso que servem os ungüentos?)


Chorei, Ah chorei!

Por silêncios e desamor. Houveram vícios.

Traição e desconsideração foram o "de menos".

Baleado em batalha, jogaram-me no ostracismo embrulhado em mortalha.

"Peguei" até Coração Partido...  Esse tolo a ser redistribuído a quem o quiser e tiver merecido.


Mas estou vivo! 

E o que morreu? A ilusão morreu.

Coisa que não vale uma "nota de três reais".


Não há penar para poesias melosas, 

O tempo é curto para sofrências.

Se nada espero? 

Ninguém me entrava.

(Quase não quero... De quem só precisa de mim)


Quero o "amor inútil" que se perdeu;

O desobrigado que não vira as costas.

Que se entrega quando não lucrativo, que não se dispensa porque doeu.


Um dia plantei rosas e jasmins. 

Há  quem ponha nas janelas, espinhos, espadas e serafins,

Quem faça do quarto um oratório, cenário-camarin.


Ai que a dor do afeto perdido não compensa se exagerada.

O preço do estrago? Tudo ficou mais caro e vazias as prateleiras sentimentais.

Por certo que as emoções saíram manchadas,

E, sabe de mais: Fiz o meu melhor!

Foda-se! 

(Ainda compensa o amor)


Mas se vc me magoou fundo, talvez eu te esqueça num canto de mundo...

Com a mesma indiferença das coisas que simplesmente são.

Vc fez seu jogo, eu fiz o meu.


A rosa brota, o inseto voa, a chuva cai porque tem de cair, 

Vem outro verme ou rebento, do jeito que cai, sabe sair.

Nada interessa em nossas querências.

Só há dança!

É inútil a crença e, diante da dança, tantos tão sem graça não sabem dançar nem sorrir...


Mais uma noite,

 Incerta!

O ritmo raro vai e vem à cavalo,

Não dá trapaça.

Impedir sequer do coice o estalo.

Vento, correria, correnteza e morte

Acontecem.

Não é questão de inveja, maldade, esforço ou sorte.

Ainda assim há amor. E meu amor não vale ou acontece pra qualquer pessoa.


Seria bom viver com esperança, talvez, na força-fluxo do tempo de andança,

Longe de tanta palidez, tanta injúria e desfaçatez.

Mas todo o belo perecerá ou será desprezado;

E há dias em que nem mais ligo.


Perdoo porque esqueço e, se esqueço, os sentimentos já não importam.

E esse ódio cansado, por demais pesado não consentiu... desistiu de odiar...

Orgulho que simplesmente desistiu...

Quando assim, já não há mais ódio ou desprezo, mas indiferença


(Soberbas aparências não valem uma nota de três reais)


Bilhões nascendo e morrendo... Quem ainda é tolo pra querer ser importante?

Envergonho-me duas vezes. Primeiro, por ter amado o que era pouco. Depois por matar, só por preguiça, no outro o que já não ouço...  

Mas tem quem me dê sono só de escutar na voz ruína.

Cansa desafiar a sorte com os sem imaginação.

E como não revirar os olhos para o lado contrário de quem já foi amado, mas não é mais não? 


De minha boca sai a alma impura dos anjos que não sabem mentir, que não a mentira da criação. 

Serei eu o derrotado.

Abro asas para sair sem olhar pra trás. Danem-se os presos na terra, os que odeiam demais!

Só depois de saldadas as dívidas é que encontro a paz.


Entre a incoerência de querer mudar o que foi, e a incerteza da navalha fria do que virá,

Só no presente é que me faço.

No mais, doce ilusão que se vai...

sábado, 13 de novembro de 2021

Feitiço de carnaval (amarração pra trazer a alegria de volta em até três dias e 1/4)


I put a spell on you
Because you're mine

(...) 

You know I love you
I love you
I love you
I love you anyhow
And I don't care
If you don't want me
I'm yours right now

                  Hawkins


Já provei o sol,.

Já provei batuque, e a moça do riso sem pena, provei,

A noite teve até mortalha rasgada e rumor de  chuva dourada.

Quis pra mim o gomo do riso melado de queijo e doce queimado,

Suor e cerveja, mel de Carnaval. Cuidar do teu mal.

E na quarta feira de cinzas na Índia, China, Bagdad ou Ondina, entrar no mar de roupa e tudo, sua piscina,

E sair pelado sem surdina, dia do diabo à quatro e um quinto, 

Queimando RG, moléstia e moleira; carteira de couro e motorista a perder de vistas; o cartão de visitas para idiotas da costureira dos urros medonhos e feiras;

Último dinheiro, o primeiro sonho, cartão de crédito estourado quando jovem no mês de março; clamor de momos, evitei o tombo, caí no mar de celular e tudo, lavado no sal à gosto de deus, sagrado de Iemanjá.


Não quero abraços magros de cansaço;

Quero vitrolas, tempestades e marola boa;

 O riso rasgo do corpo largo.

Na cama a trama, na lama, na chama insonte, te pego e amasso, 

Te beijo na 👄 na mesa de quatro, se for esse o ato.


Ficou triste? Tá tudo bem...

Doeu? Viver até que dói mesmo...

Ficou cansado à toa, largou a proa, e a espinha quebrou quando bateu fracasso? 

Não!? 

Deixa disso... 

Se perdoa, faz feitiço e tira um sarro.


Não se culpe por ser feito pra sentir... Ser de carne é também falir...

Antes que a onda arrebente ou passe,

Não esqueça do espaço em que guardou tesouros.

Amanhã a tristeza há de ir:

Sigamos a cartografia da leveza.

Vá até o porão e cate a gargalhada galhardia.


Nesse fim de semana, uma cerveja; pra o fim de ano te peço e faço oração de corpo aberto:

Mentalize num riso meu nome vermelho escrito num palmo de pano qual plano tão raro papiro defronte ao defronte da fonte do espelho de água quebrado no meio.


O amor guardado pela flor que se abrindo, sou eu quem o trarei sorrindo! 

Sou eu, sou eu... Sou eu quem pelo peito o trará sorrindo! 


Minha alegria é teu riso...

Desse mesmo jeitinho farei com você:

De frente dum prato com sal e beleza, diga: Agosto me proteja do mal: olhado, falado, pensado, atiçado, feito, refeito, desgosto, antefeito, brutal ou banal; para o caso de que eu já não esteja, jogue um pouco de cerveja ao pé da mesa - pode ser artesanal. E lembrando forte de mim, repita trêis-vêiz "sim" pela minha sorte com firmeza:

Me proteja da indigna morte e da tristeza, que não me corte com frieza a foice; que meus dias sejam cheios de trabalho e café, e as noites de vinho e safadeza. Que o "sim"  vingue, quê o "não", mingue. 100 vezes tirar do mal o bem, 100 vezes demanda vencerá, e da tristeza alegria virá,  e tudo que quiser terá, e tudo que amar, fará. 

E se quiser mais, mais uma vez a felicidade aumentará; 

Que volte feito fortuna de riso-amor dobrado, raspado o fundo do tacho, porque tenho espaço até pra quem não me quer bem; mas arrumo e entrego tudo ao quadrado selecionando o melhor pedaço, melaço e xérem, pra quem bem me quer (amém).

Depois, queime tudo e jogue em minha porta de luz, com pétalas de rosas e lírios azuis, colhidos na noite do quintal... 

Ponha um pouco de gin, gengibre, pimenta malagueta e sangue menstrual.


E ao fim grite, se precisar, pra quem quiser escutar: tem alguém aí que amo; aí tem alguém que me ama tb; gente que se importa de verdade até o fim.


segunda-feira, 1 de novembro de 2021

Mensagens Ancestrais (poema beeeemmmm empoeirado, ao modo dos simbolistas)

 

Quando eu for, um dia desses,
Poeira ou folha levada
No vento da madrugada,
Serei um pouco do nada
Invisível, delicioso


                        Mário Quintana


Rosas efusivas exalam,

Misteriosas na roda

Melífluos odores outonais.

Rasteiras cancioneiras d’amor,

Vestem altaneiras à guisa

Dos vastos rumores siderais.


Desata a vetusta odisséia,

E nos assombra uma alva idéia...

A máquina sonora soa:

De que é feito de cinza e ócio

Um soneto perfeito e dócil,

Caiado conceito que esboroa.


Apequena a ideia pura:

Ao invés da pedra dura,

A híbrida aquarela captada.

Donde houvera hastear velas?

Hei de colher outras querelas,

Ou um brando canto de mansarda?


Não me basta a terra e os mares,

Mas a curva do cais e as gares;

Quadro coarado além da janela.

Nem quero desgosto ou correntes:

Envergo o delgado nepentes

Esguichando em carne singela.


Não mais endechas calcitrantes,

Mas o sumo lasso escorre antes,

A despeito do despeito.

Digere e explode em distâncias

Breves, e sincopadas folias:

Sono, adormeça em manso leito.


Ébrios têm sido os meus dias.

Desde o despertar, doce criança,

Minha andança dança em penedias.

Paixões enganchadas ao pescoço;

Presas cariadas em alvoroço;

Cochicham entre si covardias.


Uma caixa em mim ressoa ânsias.

Busco brisas, feixes espectrais,

Alço glabros campanários.

Turibulários rezam Krishna,

Enquanto um obituário afixa

A lixa do tempo em carnavais.


Penso que a palidez óssea do papel

Seja mais sincera que um laurel,

Fumaça etérea das essências...

Excrescências da humanidade,

Não tenham mais iniqüidade

Que as episcopais audiências.


Penso que não há nada anormal

No desassossego do poema.

Ele é par e avoengo arremedo,

Do presságio de um mau aedo;

De tudo que se vai mais cedo,

Seja por desgosto ou medo banal.


Há um rochedo de incompreensão

Anteposto entre tu e tu mesmo:

Instaura a ordem nova no agora!

Para o espaço do amanhã vão,

Nenhuma esperança consola:

Desejar é achar o ermo e a hora.


Foge do casto eremitário,

E erige abruptos quiasmas;

Asperge eflúvios esmegmais.

Arrisca-te em virulentos miasmas,

E nada de mais especula

Sobre o que bem sabes demais.


(Oh bruma dos dias! Espumas do mover-se eternamente em que tudo cintila e de tudo se assenhora, vida, querer e morte... Ancestrais, enigmas meus, saudades e espessuras do tempo e ruína. Onde será que dormem agora? O que será dos mortos que não nos deixam? O que haverá do antes e depois anunciados nessa penhora?)

sábado, 30 de outubro de 2021

Oração da comida

 

Amar é fazer comida pra alguém. Riqueza de vida.

Mas o amor não basta. Necessitamos além, dum tanto de treino, galhardia e malandragem.

Ter fé na graça, observar leve a hora do cativamento, fazer do "jeitinho".

Passemos ao respeito.

Porque respeitar é comer dedicado e em paz com alguém, em consideração à pessoa, ou ser verdadeiramente reverente quando ela é quem prepara a refeição pra gente.

Grandeza também importa. Ela talvez esteja em oferecer comida, de preferência a melhor possível, a quem nos detesta;

Já a rejeição e o desprezo, estão em ter nojo da comida porque nojo da pessoa, e nojo da pessoa porque nojo da comida;

Generosidade, partilhar em sacrifício mesmo o que nos fará falta;

Mas o talento, ah, o talento é fazer com que seja irrecusável, mas sem sequer dizer uma palavra, que a pessoa repita o prato;

Gratidão: devolver o presente, e há sempre a possibilidade de vc me levar pra comer se não tiver talento...

Fraqueza, é obrigar com palavras que se repita;

Franqueza, não oferecer falsos elogios ao prato recebido;

Bajulação, exagerar falsamente nos elogios do que se recebeu, ou oferecer o que é  melhor apenas aos de maior status;

E a diligência é adquirir os melhores ingredientes que se puder, e se focar absoluta e exclusivamente na feitura do feitiço gustativo.

Sedução, comerem juntos aqueles que se querem comer mais juntos ainda;

Pureza e leveza, o não esconder a alegria dos olhos diante da mesa farta, perfumada e bem arrumada,;

Pragmatismo, fazer do comer um meio para realizar negócios;

Ou senão, para apenas aplacar a fome... 

E não há nada mais brochante do que chamar um bife acebolado de proteína, um risoto de carboidrato, e verduras frutas e legumes, de sais minerais e vitaminas... Por favor não seja "eça  peçoa"

Já a tristeza, é  não querer ou gostar de comer;

Miséria é não ter o que comer;

Solidão, não ter com quem comer;

Culpa, é  o dizer que não gosta  mentindo pra si,

Ou se envergonhar por ter a geladeira cheia enquanto outros passam fome.

Gula é ultrapassar apressado o limite do prazer;

Empatia, não desqualificar insensivelmente o que foi ofertado;

Consideração,  é  oferecer o que há de melhor;

Traição leve feito traquinas é comer escondido antes que todos estejam à mesa;

E caráter, é partilhar alegre e francamente o mesmo com todos, indistintamente;

Inocência é  comer com o inimigo sem saber que ele envenenadará teu prato ou o ouvido dos demais que estão à mesa assim que você der as costas;

Traição deep_web_hard_punk_rock_covardia_na_veia é  fazê-lo.

Aliás, a sequencia mais dramática e conhecida de traição do cristianismo - e talvez de todo ocidente - começa com um traidor partilhando a mesa com o salvador, Deus e filho de Deus a ser traído por um reles mortal em uma ceia...

Consciência é saber que o famélico não pode esperar ou sequer aprender a pescar seu peixe, antes que sua fome seja aplacada:

Hipocrisia é ter tudo e julgar o apreço pela comida entre os pobres como algo incivilizado;

Sendo que a humildade consiste em não se vangloriar do oferecido, ou fazer comparações grosseiras para rebaixar o recebido, ou o gosto alheio;

E modéstia, achar sempre pouco o que ofereceu;

Vaidade é o se preocupar mais com elogios do que em agradar a pessoa querida;

Exibicionismo é se preocupar mais com a foto do momento pro Insta, do que com o momento;

Intensidade, ter sido tão bom, que fez da foto desperdício de tempo:;

Frugalidade, é não poupar esforços nem fazer as contas por quem importa;

Bom senso e polidez, é o não se servir em excesso ou escolher para si as melhores partes antes que todos o tenham feito;

Profundidade, entender que a comida nos une para além das diferenças pessoais e culturais, que ela bem pode recompensar prazerosamente a curiosidade generosa sobre o "outro";

Ser esforçado é  tomar um digestivo quando achar que não desce mais nada.

Já mimar, é  oferecer sobremesa;

E apreciar, é  esticar o tempo com café só pra ficar mais um pouquinho com a pessoa querida;


Mas se você não deixa a tal pessoa amada ao menos lavar os pratos, aí a estará ensinando a ter o mesmo desamor que você parece sentir por si mesmo.

Carnes e flores


Teus olhos são meus livros.
Que livro há aí melhor,
Em que melhor se leia
A página do amor?

Flores me são teus lábios.
Onde há mais bela flor,
Em que melhor se beba
O bálsamo do amor?

Machado de Assis


Meu vasto amor, chiste derrotado,

Em que pecou de não ter pecado?

Queria entrar na doce esperança,

Fio com a lividez duma lança

A ferir onde já machucado?


Meu porto-amor, sono de não sorrir,

Fosse uma flor pálida e mimosa,

Belicosa de espinhos: A rosa! 

Egressa memória que desperta aqui,

Dela vêm versos velhos do meu partir.


Deixo perdões fininhos pra pecadinhos curar;

Virgi Maria, na tarde roxa a rosa há de voltar.

Recordo-me dum nenúfar da lagoa que nunca vi, 

(O li pelo meio e já tarde... A orelha ardia em carne)

O li como o visse de longe numa nave a fulgir.


Não sei o que seja um nenúfar da lagoa. Mas o imagino como se o soubesse. 

Recordo o nenúfar imaginado de quando o li embasbacado.

Nenúfar da lagoa espessa e profunda que atordoa,

Seja gentil com esse lábil esquecido.

E me faça encontrar obsoletos aboios de ventos que me atravessem rio,

Pois que minh’alma outrora sã e caprichosa, 

Já não cura ou quebra a dureza dos nós entre os fios...

Deforme de não sorrir por toda ventura,


Desposo a paixão, gládio da loucura. Cuspo ao chão nostálgicas amarguras do fremir eterno...


Minh’alma... Arremedo de coração

Quase morto de descompasso;

Minh’alma... Escrava da canção,

Ensaia o laço da cisão no encalço da ternura.


sexta-feira, 29 de outubro de 2021

Teu beijo é meu silêncio


Meu sonho, alento de sonhar-te,

É a janela intacta em que me reconheço.

E o meu peito, confissões já findas

Onde me acumulo, ausente de pensamentos:

Tua mão toca e dissolve o que em mim ainda é ruína,

Eu te beijo e acolho, o que em ti é sombra e mistério...


Ando a falar e caminhar flores e estrelas,

A resgatar pássaros, reis e os que se vão.

Semelhante a um estrangeiro louco ou criança,

Pois que em mim nada será vão.

Incerto que sou de tudo,

Como sou certo de que vives em mim?

Febrilmente vibra a carne,

Incessantemente germinando,

Me alegro em silêncio, dia e noite dedicado a ti.


Já não bastaria olhar os campos com ternura,

Desvencilhar-me de anseios futuros;

Echer de poesias brandas

As paisagens por detrás dos muros.

Quero visitar-te em minha fome-quando-arte impregnada de tempo.

(Quero caminhar juro contigo)


Não  deixarei que nenhum fragmento de vida ou morte

Sofra mais meu descaso.

Queto doar e acarinhar até o que não responde, o que não pertence;

Até que um dia tornar ao útero da terra

E lá, de repente, me alojar...


Eu te busquei como se levasse a cura,

Apaziguando sede e insônia de quase mortos.

Mas em ti redescobri: era eu quem convalescia,

Abrigando o frio de um morto.

Tu me trouxeste repouso e virtude,

Lubricidade da renúncia.

Eu cri, todas essas coisas não passavam de falso conforto.

Mas quando tive a beleza das coisas naturais que me trazia,

Enxerguei o quanto eu era pobre... 

O quanto estava gasto...


Ah quisera beijar-te amanhã

Com o mesmo silêncio com que te beijo hoje...

Reivindicar teu sorriso, catedral de anjos caídos...

Teu mistério põe brumas em meu céu convicto.

Meu beijo, é o manto natural com que te visto

E, no entanto, tu és riso matinal que desperta,

Cheio do gládio e frescor de quem tem nascido.


O meu desejo de ti é uma fé primitiva que reconcilia...

Fosso abismal já sem ânsias efêmeras...

E o teu corpo, coisa indivisa,

Prelúdio e vida que me arrasta e cria...


Artefatos

Algum dia, uma presença sonora

Sussurrará mansamente do infinito,

Ordenando a todos que retornem às cavernas e montanhas,

E novamente risquem e pintem paredes de flor e carvão...

E toquem tambores alados de pele e madeira,

E se comuniquem na selva,

Imitando a linguagem livre dos pássaros.


segunda-feira, 25 de outubro de 2021

Se vem noite, desperto.

 

Sonhei com a mulher do meu sonho. 

A bela cantando catava pedras por entre arroios.

Eu a busquei nas criaturas ermas... A busquei na quietude desperta!

Oh seres que por cima dos muros dormem e já não ferem. 

Ainda querem duras âncoras segurando as peles?


(Nem mesmo o mau demônio era infenso)


Não sei se por medo ou afeto, se por insensatez,

Esse tempo que nada venera, o que me fez? Não sei. Não sei do que virá, virei.

Sei que a bela em tempestade eu lambia, gelia de olhos baços, vagos, cerrados de fera.

Trêmula de incerteza, amor e gozo.


Por toda noite há cidades. Demais motivos e contrariedades há. 

Há visgos e outros notívagos, como ela - e eu.

Quanto a nós, nos espreitávamos até a dor de não ter mais morte.

Tempo em que do tempo se esquece...

(Se ao abrigo da maldade, não se hospeda covardia)


Onde há entrega não há injúria ou inverdade. Nem medo do que não espelho. 

Não mais tenhamos medo, querida.

Nos espreitemos até, dentro do desejo de nos ferirmos, 

Para que não mais nos firamos.


A partir do agora, deixemos as cerimônias de fora.


Qual sonho ou mágoa persiste em nossa casa?

Qual vento e areia em brincadeira de formas nos des-forma?


Ah, não valem mais minhas únicas mãos,

Nem meus únicos pés valem,

Sequer as palavras se comparam

A um breve passeio pela transversalidade da noite ao teu lado.


Antes do vir a ser do dia,

De toda labuta renhida,

Todo corpo se comprometeu e insinuou

Onde a moral estava ausente.

Há o querer bem. Restou-nos desejo. 

E o desejo nos consente mais noite.


Breve estalo, rabeio de crina, ferrugem malina pede minha língua ferina entre tuas pernas e dentes.

 Minha linda felina.

Acharei sulcos em teu corpo;

Silêncios de terras invisíveis e gentes que desconheço.

Improváveis gentes em memória de mordiscadas nessa carne de vida divina no que é te ter em madrugada.


Pássaro azul (uma canção blues)

 

Todo dia, fecho os olhos para ver mais.

Todo dia uma estrela invade o meu quarto.

E eu não sei porque um gosto estranho,

Em tua língua me convida a morrer um pouco só.

Na solidão de ser,... 

Nós dois...

Adoto uma ilusão qualquer.


Certa hora os carros já não mais regressam,

E a tinta no coração de quem nasceu poeta

Se descasca um pouco mais.

Mas para essa gente que me vê de perto,

Pinto a ponta do nariz,

E canto um aprendiz do pássaro azul.

Que não sofre como eu,

Mas sabe chorar tão bem...


Todo dia a mesma espera de alguém para me amar,

Vidros do metrô revelam a escuridão de todos nós.

Eu corro como louco só para não chegar,

E aturo hipocrisias todo o dia,

Pra depois roubar... Pequenos vícios e aflições.

(Ter coisas humanas para cantar)


Trago tantos medos que não conto pra ninguém.

Mas veja! Como é ser tão bom e ainda mentir?

Me embriago de café e recordações de verão,

Sou só de ninguém, sem medo de provar outra paixão.

Sufocando as horas até a hora de partir,

Nossos corpos conspiram longas noites de playground...


domingo, 24 de outubro de 2021

Da ingratidão, ou como dizer obrigado sem ser obrigado



Diz o Salmo 30: "Exaltar-te-ei, ó Senhor, porque tu me exaltaste; e não fizeste com que meus inimigos se alegrassem sobre mim."

"O dinheiro não tem ideias."
Jean Paul Sartre


O dinheiro cria a ilusão de que fomos dispensados da gratidão, de que se trata de artificialidade autointeressada apenas, fingida quem sabe. Algo que só fazia sentido quando ainda pensávamos que o mundo era decidido e ordenado absolutamente por deuses, e humanos semelhantes à deuses na terra, ou seus representantes.
Assim, uma vez que todas essas crenças se enfraqueceram, e uma vez que tenhamos pago pelo novo mundo que construímos, e tendo convertido todos os valores desse novo mundo em preco materializado em papel moeda, será  que nenhuma gentileza ou consideração se faria mais necessária? Sera que a gratidão só subsiste em redes relacionais autoritárias, patriarcais... Será mesmo que não haverá um "custo operacional" muito mais profundo que, se perigosamente desconsiderado, nos cobrará alto preço nesse caminho, acaso o levemos até as ultimas consequências?
 
Era esse o tipo de coisa em que muitos dos pensadores entre o século XIX e o XX se entretinham. Mas será que o enigma já foi solucionado?

Será que de fato o dinheiro, papel moeda tão disseminado quanto necessário num mundo mais desencantado que os dos séculos precedentes, mundo agora feito por e para tantos anônimos dependentes uns dos outros, também não pode vir a se tornar terrível máquina de esquecimentos e adiamentos de consideração, carinho e mesmo confortos a que deveria servir, como bem percebeu Marx ao seu modo em seu tempo?
Esquecemos do tempo – e, sobretudo, qualidade de tempo - gasto pelo professor na sala de aula, pelo agricultor que trabalha a terra, por aquele que faz a máquina e o carro, e o que transporta todas essas coisas; além dos que as entregam pra nós em balcões de mercados, ou mesmo até na porta de nossas casas; pra não falar dos que constroem nossas habitações, roupas, adereços, os que nos fornecem sons e flores, os pets lindos que adoçam nossos dias; ahhh, e o quanto dependemos dos faxinadores, dos que descartam o lixo, das pessoas que enterram nossos corpos mortais, das que fazem nossa segurança, dos carregadores, corretores, esmerilhadores, porteiros e policiais, dos mergulhadores e caçadores de minerais que tanto se arriscam, dos que lavam a bosta em algumas de nossas privadas e fossas, ou lavam nossos corpos quando enfermos, fazem nossa comida muitas vezes, ourives, orelhas e oleiros, ferreiros e marinheiros e marceneiros, pescadores, artesãos; os que criam medicamentos e vacinas, e tantas vezes tão mal pagos... 
Todas essas pessoas nos liberam tempo para fazermos outras coisas, ou nos "consertam" esticando o tempo, para que voltemos a fazer coisas que gostamos, queremos ou necessitamos. Assim propiciam nossos curandeiros de corpos e almas; esquecemos facilmente das infinitas transições e conexões necessárias realizadas sutil e silenciosamente por tantas e tantos, somente para que um simples vinho, nem que seja o mais barato, ou copo de água, ovinho de galinha, codorna ou Páscoa, fita de papel, absorvente, detergente, óculos ou dossel cheguem – e seus resíduos poluentes abandonem - a nossa casa. Quem dirá, coisas como eletrodomésticos, computadores, celulares, livros, prensas e furadeiras...
 O dinheiro, como às vezes se realiza e justifica em nossa sociedade, é  sintoma de uma ingenuidade egoísta. Senão, um tipo de Alzheimer coletivo...
Não aceito que, em nossa época, agradecer seja logicamente impossível, contraditório, ou no máximo somente formalismo estereotipado; polidez vazia ou hipocrisia, ou que, se no passado só resistiria como reverência e respeito meio que temeroso pela autoridade, no presente, ossificaria disfuncionalmente em bolsões resistentes à mudança... Só por teimosia...
Ao contrário, penso que nos dias de hj a gratidão e a lealdade, a confiança cumpram papel crucial para além do estritamente privado. Trata-se de um jeito de nos lembrar: eu dependo de você, assim como você e eu dependemos de outros, que por sua vez dependem da gente. É assim em todas as sociedades complexas como a nossa. 
O  neoliberalzinho de botequim talvez pense diferente, e ache que isso é opressão do Estado e sociedade malvadões, prejudiciais ao seu sagrado direito de foder a vida alheia como bem entender sem ser punido por isso, e chamará isso de comunismo. Mas será que o que ele gosta mesmo é de liberalismo, ou de escravidão para os outros, e liberdades pra si? Sadismo!? 
Pois certamente que nos tempos das escravidões e servidões do passado, assumir a dependência significava admitir uma inferioridade, submissão e obediência para com o mais forte numa ordem patriarcal violenta, sem que  ninguém ou quase pudesse interferir. Tempos em que as elites andavam com um crucifixo na mão, e a chibata na outra!
Hj, claro que persistem muitas relações terrivelmente desiguais, mas a coisa já não é mais tão simples. Aliás, quem inventou o Estado e esse tanto de leis, regras, especificações especializadas e normas como as conhecemos não foi Stalin nem Mao, Hitler ou Mussoline, mas a burguesia. E o sentido de "Depender", a partir daí, passa a ser cada vez mais, em contextos de pacificação interna, duplo vínculo que se realiza em reconhecimento recíproco. 
Foi Hegel quem mais claramente primeiro entendeu isso, e Norbert Elias quem conferiu o sentido contemporâneo mais interessante que conheço, para esse fenômeno sociopsiquico. Que a linha corria Tb do mais forte para o mais fraco. Sem isso não há civilização ou democracia. Essa reflexividafe funda a modernidade.
O Brasil, esse país com uma das maiores, senão a maior concentração de renda do mundo, país feito sob medida "por" e "para" rentistas ociosos, parasitas do trabalho alheio, só completará o ciclo da escravidão quando compreendermos coletiva e profundamente isso: que gratidão não significa obediência, que dependência não significa submissão que humilha; e Tb, que é  o trabalho o que nos sustenta, que gera riqueza, não o orgulho, superioridade, elegância, violência ou ganância, ou mesmo a “generosidade" da classe dominante ou qualquer cor da pele, gênero, sexo ou condição; orgulho do patrão que carrega consigo a certeza de que nasceu pra mandar; que não deve satisfações a mais ninguém que não a Deus, e olhe lá... 
Nada disso nos salvará desse puteiro - com todo respeito aos verdadeiros puteiros... Essa oligarquia pensa que dominar é adquirir o direito de não se submeter mais a lei, de não dar satisfações. Pra ela, "cidadão" é palavrão contagioso... Essa gente odeia o Brasil! Essa gente odeia pobre, essa gente só tem amor por si, e malmente pela própria família.
Descobrir que a gratidão, em sentido de  vínculo sensível mais profundo, honorifica e sustenta o sucesso duradouro, inclusive dos formalismos positivistas e liberais dentre todos, convencer sobretudo os  econômica e politicamente superiores não é  fácil,  talvez seja mesmo impossivel, e um texto assim me faz parecer bobo, ingênuo, ou até mal 8ntencionado diante da complexidade das lutas históricas de que temos ciência... Eu tenho consciência disso. Sei que  não é  fácil perceber que, mesmo sendo atribuição básica de todo aquele que se pretende elite diretora de um coletivo em tempos de democracia, o jogo de poder é mais complicado e renhido, muito mais... 
Mais difícil ainda levar essa consideração a sério sem transformá-la em meio de manipulação, tecnologia instrumental para se explorar mais e mais a boa fé do outro tantas vezes premido entre as velhas e as novas moralidades - e imoralidades. Ao menos até que a revolução varra do planeta todas as formas de vilania... Ainda precisaremos de algo do tipo.
Eu dependo de vc, vc depende de mim, e eu sei que mesmo que em dada situação eu venha a ser o mais forte, vc ainda assim é livre, até certo ponto, claro, livre para abrir mão  do vínculo que estabeleceu comigo, e travar relações materiais, cognitivas e afetivas com quem lhe apetecer ou for conveniente. E que eu tenho a perder com isso, e não apenas vc. A selvageria começa quando considero que meu maior poder diferencial autorize minha descarga emocional desimpedida em sua direção.
Gratidão aqui não perde, mas só ganha em importância. É dizer: vc importa! Lembrarei de vc... Agradeço por ter, entre tantos, me escolhido ou feito algo que tornou meu dia melhor. Agradeço, porque é fácil se esquecer que somos livres, e que por isso os vínculos precisam ser cativados por uma decisão que, só nossa, só se realiza plenamente, só se completa, quando tecida por ambos os lados. 
Ninguém nos obriga, muito menos a dizer: “muito obrigado”, “fico feliz”, “que bom que tenho você “, “não sei o que seria de mim sem vc", “você é  dez", ou “eu te amo”. Todas expressões tão belas quanto descartáveis, ou mesmo dispostas à manipulação irresponsável. 
As vezes ficamos confusos quando as escutamos... Mas não deixemos de utilizar muitas delas inclusive nos balcões dos mercados, com os anônimos que sem nos conhecerem ou dependerem de nós pra nada, direta e exclusivamente, tornam nossa vida melhor. Sermos gratos pela vida é  só um reconhecimento do quanto somos mais um dentre tantos lutando por viver e conhecer tanta gente especial, é  uma forma de nos lembrarmos de nossa finitude, e de enfrentarmos nossas sombras e delírios de grandeza, a não ser quando começamos a nos achar superiores pela vida que nos foi dada... E esquecemos que não temos controle de nada...
Queria que minha vida fosse feito uma árvore de Natal com presentes pendendo numa listinha de destinatários queridos. Ainda estou longe, muito longe dessa grandeza, mas não descuido da meta. Por ora, faço o pouco que posso, mas me esforço. 
Não percamos o “muito obrigado”, expressão tão velha, que nos lembra um velho significado muito mais violento, exterior, mas que já não perdura. Não somos mais obrigados a dizer obrigado, e é isso que confere seu imenso valor quando o dizemos. E não sei se há virtude nos ingratos. 
Mas sei que a vida precisa de colo e café coado com canela,  isso é apreciarão verdadeira. E sei que quem nunca recebeu, não saberá como dar; nem entenderá, quando receber, que estará a partir de então “obrigado”, sem que ninguém possa, ouse ou queira obrigar ou cobrar a dívida. Essa dívida do coração, não da matéria bruta, útil, funcional inerte sem vida,  é o tipo de dívida que busco aumentar a cada dia, dívida em que os juros tem outro nome: a gente chama saudade. 
Os que cospem no prato que comem, e apunhalam pelas costas aqueles com quem acabaram de comer à mesa talvez simplesmente sejam ocos, estejam apodrecendo. Eu, tento ser grato até mesmo aos que me fizeram mal, grato até por certas tragédias da vida, por merdas inacreditavelmemte sofridas, e até algumas cometidas. O quanto não cresci por isso? E o que não seria da história humana sem os ingratos...  Os traidores, a perfidia?! 
Não haveria tragédia nem comédia, pra começar. Literatura e arte seriam uma chatice... E os deuses então, viveriam todos ociosos e sem maiores oferendas.

Nos diz a oração: "Obrigado pelas desilusões elas me ensinaram que não devo colocar todo o meu coração em nada que existe aqui na terra e que fazendo isso sofrerei menos quando algo não der certo (...) Obrigado também pelo anoitecer ele me faz lembrar que tudo nessa vida é passageiro e que nenhum momento da vida seja bom ou ruim durará para sempre..."

O que seria do cristianismo sem o ressentimento? E da correlativa crença, por vezes bastante fantasiosa, de que outros nos invejam e querem nosso mal pelo que temos, sobretudo os malvados pagãos e feiticeiros, os anormais e bodes expiatórios de todas as épocas... Quantas vidas, algumas verdadeiramente miseráveis ou ao menos medíocres não se sustentaram somente por crer nisso!?
Aliás, a cena de traição mais conhecida e revolucionária do “ocidente” começa no oriente, com um invejoso traidor se alimentando em celebração, confraternizando na mesma mesa ao lado do deus-filho, irmão de caminhada e destino. Beijando sua face tão íntima quanto sagrada; a face daquele que será entregue em troca de um saco de moedas; dinheiro vil, podre, pelo qual se comprou a sorte do Deus que resignado sabe que será humilhado, torturado e crucificado; cordeiro morto consumido em ritual, para depois, só depois de cumprido o longo roteiro de martírio, ressuscitar para nos salvar e, enfim, ser exaltado... O que seria do cristianismo sem Judas? Esse que suicidou de remorsos... E se Jesus tivesse fugido... 
O que seria de nós aqui na Bahia, sem moquecas e ovos de Páscoa!? 😱
Aqueles curtos acontecimentos modelaram os últimos 2022 anos de nossa história; o suplício do corpo do cordeiro, carpinteiro-pescador que andava com vestes simples e pedindo esmolas entre putas, leprosos, sofredores; mas também cegos, ladrões, sacerdotes, aproveitadores, bêbados, coxos, covardes, hipócritas e ingratos; entre gentes carentes, dóceis e de bom coração, mesmo que por vezes brutas como era Pedro, gentes dentre os mais pobres e comuns na Galileia.
Amém igreja!
Pois o cara que mudou o mundo mal "valia" um saco de moedas...

sábado, 23 de outubro de 2021

Dia de criança

 

"Em qualquer homem autêntico existe uma criança querendo brincar."

Friedrich Nietsczhe 


I - Infância

A infância não negocia com nada que negue o fluxo da vida...

Bela explosão de micro estrelas, sóis das nossas existências.

E com ela nos lembramos do que já quase nos esquecemos.

Hoje é 12 de outubro, dia de chocolate, brinquedo, cocada e marshmallow escorrendo pelos cantos das bocas...        

Garantam fofamente seus pedacinhos de céu... 

Renovem todas as palavras escondidas na rudeza cotidiana.

Porque alguns de nós foram crianças há tempos. Mas algo da infância, ainda que saudosa e intimamente sabemos.

Difícil lembrar, porque de longe minha infância, sua infância, como nos lembra Manoel de Barros, eram o dizer coisas sem nomes.

Essa abertura da linguagem, nervura com o mundo para todas as possibilidades e impossibilidades de nossas consciências já mais duras... Maduras...

Só sei que em meio à algazarra da casa, eu me misturava à areia do quintal.

Acordava o trovão e minha mãe tremia, orava,  escondia espelhos. Mas eu e meu irmão, a gente corria pras pequenas poças em que rãs e gafanhotos saltavam,

E fazíamos do pedaço de isopor, folha ou graveto, uma intrépida nau de formigas; sementes, adereços descartados e pequenas frutas, bonecos e flores em missão de salvamento, batalha e comunhão mimética entre espécies distintas...

Era assim toda vez que chovia forte e os ralos entupiam, e a cozinha e quintal da casa alagavam. Por vezes aparecia uma pequena serpente, mas sempre havia uma miríade de outros bichinhos saindo de seus esconderijos ora celebrar a abundância da chuva.

Era segunda, sábado ou sexta feira? Era inverno ou verão?

Que me importa?!  Eu tinha o roseiral...

E a rosa era da cor das paredes da primeira casa de que me lembro.

Havia um abacateiro, o único verdadeiro abacateiro de todo o mundo, do qual todos os outros eram apenas pálidas cópias. Imensas mangueiras, goiabeiras, coqueiros entre outras árvores nos terrenos baldios dos arredores... E tb margaridas, arbustos, flores amarelas brotando dos telhados e cantos de paredes de casa; lagartixas e lagartas, borboletas, viuvinhas e passarinhos, bichanos de temporada,  até corujas e pirilampos, morcegos, cigarras, piolhos de cobra e camundongos,  escorpiões, muitas aranhas, e até micos e sariguês eventualmente apareciam nos nossos jardim e quintal.

Não sei se me tornei o homem que minha criança queria,

Mas penso que me tornei o homem que cuida daquela criança que quase deixei morrer por descuido.

Lembro de joelhos humanos; as pessoas eram feitas de imensos joelhos, e que algumas vezes minha cama amanhecia molhada cheirando miraculosamente a xixi. Quem teria feito aquilo comigo? E por que? A única explicação plausível é que as camas daquele tempo tinham necessidade de urinar nas pessoas durante a noite...

Lembro de chorar pra largar o bico – chamava kekeko...

Minha mãe passava horas sentada na máquina de costurar,

E o ritmo das suas pedaladas era canção de ninar.

Quando sozinho, tinha medo de algo a que chamavam Deus me observasse intrometidamente  numa relação tóxica com meu corpo e desejos. Comecei a entender que era isso que denominavam consciência.

Penso que foi Deus que de tanto me espionar me obrigou a desenvolver esse órgão estranho,

Ao ponto mesmo de já não importar se ele existe ou não.

Perdi a batalha... O monoteísmo venceu! Só me restou a guerrilha selvagem... Resistência nas trincheiras, guerra do tempo do nunca, do dizer não...

Mas bem antes, mal sabia que vivia uma fábula digna de Monteiro Lobato, mal sabia que a roda da vida me observava, em folia de seres e encantamentos...

E pela roda da vida nos movíamos todos nós.

Que algo me tornava a um só tempo único e comum, sozinho e com todos.

Por isso é feliz e bonito, mas um tanto nostálgico se ver as nossas crianças de hoje.

 

II – Vida e resiliência

Não tive filhos, mas pets e sobrinhos a quem entreguei meu amor paterno.

Não há sobras no tempo. E essa criança que trago vez em quando me protege, vez em quando sou eu que a protejo..

A infância é o melhor remédio contra o temor da morte...

Onde encontramos os fluxos do impossível em delicadas braçadas,

Numa terra por vezes dolorida, mas sempre reencantada por sopros curativos nas feridas,

Medicina ancestral infalível que asperge amor - quando se foi criança amada.

Não adianta, só podemos adiar um pouco nosso próprio esquecimento e provisoriedade

Como cultura e verdade de uma época; adiar nosso lugar entre as ruínas de um tempo que os seres do futuro não compreenderão.

Mas quando uma criança brinca, é quase como se meu corpo brincasse com ela, mesmo que eu esteja apenas observando.

E só nos resta aceitar nossa provisoriamente  no tempo presente.

E nos presentear com o agora do ser.

Geralmente sentimos que a visitante, a monogâmica morte nos chegou cedo,

E queremos mais um dia, e mais outro talvez com todos os demais.

Mas a morte não existe para o morto,

E a vida já tem boletos demais para pagar, coisas demais a fazer, para nos preocuparmos tanto com o que não nos pertence.

Se não controlamos as coisas quando presentes, o que pensar do que será quando já não mais?

Oh doçura e travessura de vida, combater e lutar a boa luta, desejar até o fim...

Que delícia e gostosura de mundo... Quero mais e mais esse até o fim...

Que a criança amada a balançar os braços não sinta medo; que haja Amoras e avelãs aos milhares; qual flor delas Divas belas,

Valem o tino que atina pra mandar Ninar nossas tardes douceradas desses deuses Teologais, lindos  e amados animais mortais...

 

Lembro que quando criança, minha timidez perante os estranhos na minha casa em São Caetano era compensada pela curiosidade de tudo,

E um broche de plástico achado enterrado no quintal valia feito diamantes.

Se pudesse escolher um tempo do  eterno, jamais abandonaria minha infância,

Porque também ela já me parece um tempo eterno, um quase lugar; aparente não movente, mas já que eterno fluxo inconsciente.

Em que coisas e gentes não se separam, e a natureza e seres se dão presentes.

É quando, na pequena cidade do interior, fiz de minha infância esse gosto de fruta roubada.

Agora, todo o medo do fantasma da morte, espanto-o com crianças, ungüentos e feitiços da vida!

 

III - Morte

Meu maior medo não é de morte, mas de vida insuficiente, vida sem significado,

Dum fim anunciado, malfadado e cheio de remorsos.

Temo viver sem me entregar a beleza do que transforma

Essa realidade esmagadora em outra coisa; ao que cria e se apropria do mundo sem lhe por rédeas e regras, mas as tirando todas.

Minha rebelião contra a morte não se dá negando-a ou enganando-a, mas somente não sendo mais um que resiste à vida.

E eu juro que observei atentamente, nenhum dos que se foram voltaram jamais... Nenhum dos insubstituíveis, muito ricos ou membros honoráveis de qualquer clube respeitável...

Nenhum deles se alevantou de debaixo da terra como num filme de zumbis...

Mas se me fosse possível um pequeno e último pedido,

Gostaria apenas que os que não estiveram de fato comigo em vida, essa vida já cheia de obstáculos,

Que não desperdicem seu tempo nem o que me restar.

Que por favor, se algum dia me tiveram a mínima consideração, não me façam visitas em hospitais para reparar culpas e maus sentimentos, ou para me pisotear às custas da minha dor – isso talvez acelere minha enfermidade e morte.

Para esse tipo de visita de estranhos, aceito apenas: Chico Buarque, Cindy Lauper , Shakira, Juliette, Paul Mcartney e crianças – Gregório Duvivier pode rolar também... E com certeza ele faria boa piada desse convite mórbido...

Muito menos, partilhem da derradeira despedida.

Por favor, não gastem seu tempo, e a boa vontade minha e dos que de fato me amaram, dos que me importam, indo ao meu funeral;

(E se não restar nada como a alma, como eu acredito que seja, pelo ao menos respeitem minha memória e não profanem ou contaminem a partida)

Se quiserem amem-me agora, e atirem amor sobre esse meu corpo vivo.

(Bem melhor que flores sobre o silêncio vulnerável do morto)

Somente me abracem e chorem comigo no tempo do agora... Sejam a criança que foram, novamente nesse agora. E amem como se só houvesse o presente. Não me dê mais nada. Esse é seu melhor presente. Amem mais, e deem menos améns igreja... Esse chorar pitangas e fazer orações à segura distância, é o receituário dos covardes, dos hipócritas.... Amém igreja!?

Quando eu já estiver morto,

Abracem... Um cão, um gato, uma árvore,

Ou um bife mal passado.

Quem nunca soube ou se interessou por minha música amorosa em vida, como saberá de mim em morte?

Não temos nada a perder, somos  minúsculo fragmento entre bilhões  que já se foram, e bilhões ou trilhões que perecerão;

De acordo com a certeza implacável do tempo, todos nós já não estamos, no final das contas, mortos?

E todos os seres do mundo temem a violência e a aniquilação,

Mas nem todos agem igualmente diante disso: há quem grite, outros retrucam, há os que se amoldam, os que retribuem ou revidam, fogem, paralisam, e há também os  que morrem antes...

E talvez o suicídio não seja afinal negação da vida,

Mas uma tentativa desesperada e deturpada de se controlar a vida que o suicida ainda possui, Uma triste afirmação de um fraco poder.

Por que tanto medo e apego a essa banalidade?

O que nos resta, como se diz, é fazer planos para uma vida longa, e vivê-la com a intensidade de quem tombará antes de se abrir a próxima porta.

Porque a vida é vivida diariamente sem boas rotas de fuga,

Da morte, como se diz, escapamos todos os dias em que continuamos vivos, até vivê-la num brevíssimo instante.

Meu desejo é não morrer antes nem depois, mas no momento devido.

sábado, 16 de outubro de 2021

E por que não escreveria?


Eu tinha medo da poesia!

Meu monstro civilizador: bem alimentado, mal fosforescente sobre a pele.

A queria minha, poesia, mas tremia feito em febre do rato quando perto.

Eu temia que ela me revelasse pequeno.

Diz a escola:  a poesia é parágrafo a parte no de profundis do ser.

(Naturalmente, o "comum dos homens" nada saberá sobre ela, já que "nada" sabe sobre o ser?) 

Poesia: excentricidade adolescente para amadores de temporada; recheada de clichês!?

E quem ainda quer carregar o fardo do ser profundo?

Escola às vezes é  máquina de afastamentos. Poesia, máquina do tempo, encurtamento de lonjuras...

Na escola ficamos com a xepa dos instrumentos. "E lá se vai mais uma empilhadeira de tropos poéticos, resina de rimas cadentes; fuligem de métricos..."

E na poesia dos reconcilios há até papos com mortos.

Seria eu um Kardec literopical? Escolhido merecidanente para tão nobre e mal pago hábito? Seria suficientemente elevado, hábil, nostálgico e espiritual? 

Quem honrará a poesia do mundo conforme o canto do poeta profundo? 

(Não sei o que seja um poeta profundo)

E tive tanto medo do rotundo, que me borrei de letras pela ponta da esferográfica.

Eu, animal miúdo saído porta da escola de volta pra casa;

(Que belo tropeço de cara na pintura!)

Introvertido, quebrei a face do descontentamento na face do “outro" moldura.

Caminhei por não contadas horas entretido na rua alheia de unguentos...

Uma sombra de mim se assenhora; quem sabe a medonha me bate a porta das horas?

A rua era nova e sem postes ou pontes, sem pavimentos, placas, traves ou escoras. 

Precisei, preciso, precisarei! 

Escrever! 

Alumiar a pegada das coisas.

Escrevo porque acontece um ruído...  

O silêncio, excitação muda no que se quebra.

Ninguém vai lá perguntar à aranha porque tece a teia... Ficaríamos intrigados se de repente ela desistisse, ou pior, replicasse: "Teço pois é  minha vocação", ou então: "porque gosto, e preciso comer..."

Há uma guerrilha denyro do meu risco, 

E esse medo da beleza me fez por tempos ler poucos poemas. Ou ler como se fosse ritual sagrado em segredo, perigosíssimo se mal executado.

Mas a boa poesia é arte de quem sem peias não se conforta à violência dos monopólios, oligopolios, trustes e lobies decadentes... 

Mal sabia, a fonte e a fome eram de todos; de toda vida e farsa...

Sei um pouco, mas muito pouco mais que outrora,

Quanto mais consinto a dor e a delícia de outros. 

A dúvida também me apavora!

Talvez a poesia seja hoje dom de bardos deserdados, .

Já eu, gostava de pensar como Pessoa: o poeta era um fingidor!

Mas até aí vai nada bem, já que eu mesmo me enganava. 

Eu, que escrevia querendo a verdade escondida na alma.

Mas a verdade poética não se esconde, é relva sutil e dispersa ainda por ser recuperada, 

Terra aberta que se cativa com afago, 

Não pela força do ego violador.

A poesia não existia pra mim antes da dança;

Eu não existia antes de dançar com ela... 

Mas a vida é maior que o texto, maior que o quebrar do vento;  texto precisa "se esforçar" pra não fracassar copiando a vida; 

A poesia mais parece vida com vida em outra cor ainda não nascida. 

Corte costurado pela flor sem nome.

A música já tem seu direito ao movimento, só por ser música. 

A poesia tem de conquistar a heresia na contração de verbo-dentro-da-boca;

Quebra num salto o ar, trazendo de volta a melodia esquecida.

Minha primeira poesia foi sobre formiga e nuvem, e ainda não carecia de palavra.

Minha segunda, sobre o amor. 

Queria que a mulher santa e desejada soubesse o valor do amor despedido.

Pra que ela me amasse devidamente desesperado;

Queria que quando lesse meu desespero-poema, o amor despencasse a primavera... 

Mas isso "era" eu, não sou mais... Isso era eu, não era ela...

Minha terceira poesia foi sobre morte e primavera.

Hoje pouco se lê poemas,

E há mesmo reticentes fascínios; 

Adoração e incompreensão impacientes diante do poeta morto.

E para o poeta vivo ainda pior: talvez esteja mais morto que os mortos jamais puderam estar...

A um só tempo indispensável e obsoleto...

Há frases - quando há- no Insta bem mais curtas e proativas para as esperanças dos seres aligeirados,

Que as frases angustiosas de poetas densos, lentos na peleja...

Envolvidos nos dramas do mundo.

Poesia agora é "coisa de velho", lugar comum dum sublime esquecido.

E há quem diga: guardiã da memória ainda não feita história.

Se o for, que desastre o de ser a maior esquecida;

Esperança que morre, levando consigo todos demais defuntos sem glórias...

Ah, esse labor duríssimo de buscar palavras 

Num penoso recinto,  nevoento leva e traz incômodo de mundo;

Labor tantas vezes ocioso de pedantismos. 

Por favor, que ninguém se puna por não sentir “certo”... O manual dos sentimentos está sempre em aberto.

Não se culpe por não estar de acordo... 

A poesia ama os "desacordados"... Pior é não sentir...

Poemas são feridas e encontros, ou encontro do qual não se sai ileso.

Com quais palavras poderei dizer "Te Amo"? Com quais escutará? Como direi do seu jeitinho tão seu; fazendo com que me entenda, mas que também não me entenda letra por letra jamais?! 

Qual extravasamento quieto deixarei feito ranhura, ou entre rachaduras duma ruína desbotada? E qual criança buliçosa poderá por ventura fundar seu próprio esmerilho? 

Escrever, escrever!  Para uns, pode ser vital...

Estamos sós, e a poesia que é memória, no tempo do agora escarafuncha a solidão que faz lembrar do esquecimento de tantos e tantas coisas.

As vezes, só por dizer, morria e ressuscitava  em nervuras. 

Se palavras matam e adoecem, elas também dão a vida que aquiesce. Ou pelo ao menos dão  dignidade ao perecer. 

(Nascer e desnascer... )

(Lembrar para esquecer)

A poesia desperta um animal ferido, fofo e virulento, 

É um encontrar no deserto o jardim das delícias e espinhos todos juntos e misturados. Alguns, malditos...

Dizer morte pra quem sabe não matar.

Quase tocar o dizer o não e o mal... Se têm palavras ao chão na disposição pra se perder.

Poesia, arte do impossível. 

E a arte, se for o caso, deveria causar medo apenas no opressor, não no oprimido! 

Deveria libertar!

O poeta esteve na borda de tudo e olhou pela janela,

E amou, e odiou;

Fez artesanato do que encontrou, pedaço a pedaço desse presente ingrato:

Do mundo se curam leitor e poeta em recitario.

Em minha defesa digo: tentei modelar com mãos hábeis o amor.

O poeta perdeu o bonde e ainda não sabe.

Esse lembrar das culpas sem se tornar culpa,

E escrever, porque escrever  com o mundo é uma ordem sem rumo,  sem ninguém que ordene.


Talvez a melhor forma de fazer maior a nossa poesia seja desistir de ser sua medida.

terça-feira, 5 de outubro de 2021

Despedida


O derradeiro adeus nunca é dito;

Olhar vazio de quem jaz morto.


Queria ter tido mais tempo... Queria tivéssemos mais tempo...

Mas provavelmente desperdiçaríamos com ingratidão o tempo adicional concedido.

Mais um dia, sete dias, 236,54 dias? Ou um século emocionante sem alentos?!


Meu coração improvisado, ganhei num transplante indelicado,

Dentro dele há dois: tudo que foi legado se soma ao não planejado pelo primeiro proprietário.

Um, quer viver todas as im-possibilidades, o outro, dorme para não ter de vivê-las...

Não há democracia, acordos civilizados ou regime de livre mercado entre os dois habitantes.


Mais tempo pra quê, mais tempo pra quem?! Aproveitaremos o perdão concedido, ou teceremos outro desencontro? 

Temos o que nos foi concedido para que realizássemos nossa quota de bobagens;

E não há módicas prestações ou rescisões contratuais ao acaso do talvez,

É a temperatura da indiscrição para dias fúteis.


Ah esse amor cascudo, vê-se que nos pede demais.

Deixa então arrastar meu olhar para o cais profundo, para a estação do trem do leva-traz de todos os cantos do mundo.

 Às dores dos mais noturnos, há de se dar adeus sem des-sorrir, mas também sem sorrir demais. 

Vai e se despede oh vontade de vida, marinheiro dos marinheiros dos maneirismos meus,  

Dos hábitos e crimes soturnos nascidos de amores vãos desde velhos carnavais.


Tenho uma queda por bichos e setembros barrentos de um barro vermelho e rachado;

Ainda tenho uma queda detestável por mulheres sinceras e más.

Se me enrosco, vivo enrascado...

Sei que sou estação sem destinos prefixados ou bilhetes carimbados, sei que sou tempestade que se rasga fora de época.

Mas farei adeus feito menino que brinca de Deus, só para não sofrer o desatino de me perder em sonhos que não são meus.


No fim confesso minha maior queda: pelo estrago, pelo excesso, tudo que transborda!

Só não sei dar adeus aos maus hábitos de que me censuram, de me dar sozinho, mergulhar sem pedir licença, mesmo que você me peça licença.

(Sou mal educado dos sentidos)


Amo! Tanto que tive de morrer. Mas me fica a memória da hora mais delicada da flor.

E antes mesmo que eu acreditasse realmente que tudo ficaria bem, fingi apenas acreditar,

Talvez só para frustrar desafetos e fazer sorrir aos que amo sem protestos.

Tudo que foi vivido, seja feito porto feliz que vencido despede-se de tanta nau linda, que cede à vontade de deixar a terra pra ganhar mar.


Só não suporto os hipócritas, os frios de caráter, os que terceirizam responsabilidades,  decisões, desejos e afetos que são incapazes de expressar;

Desprezo os dissimulados, os covardes que silenciosa e sorridentemente nos cravam o punhal pelas costas,

E ainda se vangloriam e se justificam feito mártires devotos pelo ardiloso crime.

Essa gente que não é  gente, mas sapos sem nobreza, amor ou fibra. Essa corja me enoja.

Os desprezo profundamente. Deles não trarei saudades, mas arrependimentos.


Minha vida tem sido um barco singrando agitado, e já não ligo que seja assim ou assado. Apenas sigo à penas, há penas...

Aprendo e degusto tudo ao meu alcance. Eu de cá prometo fazer meu melhor lance nesse a diante. 

Tomara quem fique faça o seu.


Sei que vou e volto contraditório, mas eis que de repente em meu sonho medonho me reponho,

Antes de onde estava, antes de toda gente, só fui lá diante para me perder outra vez.

Salto entre mundos e muros, mercados, casas e causas dentre avexosas noites;

Admiro sem sê-las as quase metades que nunca se cansam; o faço distante dum vil letrado de anel brilhante, “eu sou eu, nicuri é  o Diabo...”


Doce brincadeira de amarelinha na pequena cidade de capelinhas, me movo de novo,

 Defronte à padaria do português lá da esquina, aquele de quem nem mal falo bem.

Vou para onde possa adoçar a dor de outros que poderão adoçar as minhas.

E há quem no meio da confusão tenha partido sem dizer nada, 

Já sabendo que era tarde, e que ninguém pôde mentir, sequer fingir, dizer que não...


Era noite alta, e a claridade dessa solidão me fez mais forte pra compreender que nunca estamos sós.


Tenho tanto a dar... Mas agora penso que não temos mais lugar.

Nada é pior do que ser sacudido feito boneco do destino ou capricho alheio;

Nada é  pior que conviver com os puros, os que andando juntos se creem justos e dotados de qualquer missão...

Gente que não distingue supostas boas ações e vontades entregues em orações,

Das consequências impremeditadas das tramas do tempo do mundo;

Gente binária e sem amor.


Não deixemos que pequenas palavras se estiquem em demasia para além do que merecem:

Como fossem um apito renitente de chaleira secando a vida sem vontades;

Como fosse o zumbido irritante de bomba que efêmera explode e treme.


Há coisas que morrem antes,

Coisas que precisam que se apague a luz, avise aos vizinhos e se entregue as chaves.

Sem vinco ou viço, pedem que se regue pela última vez as plantas como sinal de boa vontade...


O cão amuado escondido no quintal morreu de fome; parei de alimentá-lo,

E o tempo nem sempre é a cura, mas apenas um morrer de fome, infecção ou inanição do que não foi cuidado, ou que precisa ir...

Mas se for por orgulho, não se precipite em dizer adeus, pois não será assim que encontrará a paz desejada no exílio do tempo.


Essa vida talvez seja irremediável despedida, 

Muitas vezes sem chance de volta, adeus, ou de arrumar malas e bater as portas e botas... Sem sequer sentir saudade - mas quem sabe?


As vezes alegria nostálgica da lembrança que doce, 

Outras, suspiro amargo aliviado diante do que  faz morrer por cansaço.

Num caso é mover imóvel quando tudo já se foi, 

Noutro, alegria triste por amputar um membro mórbido e ainda assim seguir.

Seja como for, ambos são um dar boas vindas a outro começo, quem sabe, não se repetindo em erros.


Dar adeus mesmo que em silêncio é  tentar avisar ao tempo o que só podemos fazer retecendo o espaço dum agora feito distanciamento.

Sei que lirismo assim anda fora de moda, 

Mas também sei, ainda dói demais se a partida convence menos que o desejo de voltar atrás.