quarta-feira, 31 de março de 2021

Agonia e renúncia

 

Toda infelicidade que às vezes sinto 

Sem razão social, proprietário ou capital de risco,

Não compreendo como ainda multiplica.

Será boa gestão da noite póstuma que nos clama?

Ou só tristeza te convocando, oh noite nova, 

À perfazer mais um turno?

Qual escuridão tem engordado à custa da nossa pobreza?!


Tantas vezes preferi estar num pedaço de inferno,

Só para esquecer o trazê-lo dentro, em segredo.

Mas a vida é demasiada e curta

Para não provermos máximo, o amor como meta.

(Capital lento, porém mais duradouro que o rancor,  faz a demissão  da melancolia)


Parabéns amores meus,

Cultivaram lindos jardins nesses infernos teus.


Já os antigos inventavam coisas 

Como diabos, narcóticos, teatros e heróis.

Belo trabalho para pecados curar... 

Mas há pecados legados, e outros por nós criados, 

Sem falar do difícil trabalho de separar uns dos outros.


Ainda arde a estrela perdida no além firmamento; a que me fascina.

Impossível beijo além das noites irascíveis e arabescas...

E como a quero... Todos os dias beijá-la, amada, mesmo que me queime 

Para todo o sempre... 

(De todas as artes, a mais difícil é a da renúncia, irmã do esquecimento)


Hoje se vai à psicoterapia!

E lá também descobrimos que não precisamos ser a soma dos nossos erros.

Não há um "onde" para ir: meu desejo, teu desejo, são joia prostrada

Esperando o bom ourives.

Pois que tantos preferirão enxergar não o presente mais lindo,

Mas o que em nós é pequeno.

Talvez por covardia diante da própria pobreza. Ah sim, também me amesquinhei.

Por covardia, sim, enjaulamos os que havíamos amado pela beleza do voo.


Quando criança quis ser policial, médico, sacerdote, ascensorista e cobrador.

Tornei-me o que conta histórias desses e tantos outros;

Talvez porque cedo cansei de mim.

E enquanto nossos pais quisessem até o fim ver em nós a infância esvaída,

Nós, estranhamente, pesávamos ser os mesmos,

Ao tempo em que sabíamos não termos sido o que a criança que fomos um dia, sonhou seria.

Mas todos os ídolos que nos cegavam também tiveram de ser, 

Dentro do precário de fracassos chorados em silêncio, o que não eram.


domingo, 21 de março de 2021

Lascívia

 

Que todas gentes lisas e fogosas nos atem,

E que as delicadamente avexosas não nos queiram mal.

Não nego:  nas boas horas mortas... Indecorosas...

À tanta delicia-amizade que me sorri, 

Amoldo-me sincopado neste bem abrir-te o grelo, 

Teso... Quando em mim se enrosca

Intumescendo à procura de zelo. 


Primeiro em fantasia, devorei teu corpo impaciente 

Com olhos de quem rouba pela luz a tensão

Que precede o tátil tesão realizado.

Quase saindo pelos poros desse meu corpo-gesto, 

Agitei-me defronte, consumido por tua imagem,

Belo balouço deste quadril que me rebola.


Pelos olhos, cheios da fome infantil que principia na retina,

Imagino tocar tua cintura...

Resvalo lenta e descaradamente entre coxas e aveludados seios, 

Massageando por voltas voluptuosas tua gostosa bunda.

Mordisquei delicado teus mamilos;

Beijei-te... feéricamente,

E você, sempre mais manhosa ofereceu-me teu pescoço arrepiado, 

Enquanto vestia o meu pau com tuas mãos de fada.


Essa nossa ginástica de sobes e desces, 

De vens e voltas, 

É sinfonia breve de taras, que emagrece...  

Queria te dar tanto ou mais... Que me desses...

Creio ter antecipado o te despir mais de mil vezes, 

E por dez mil mais nos amaremos em todos comodos das casas,

De jeitos além dos  ordinários sentidos...


É como se meus olhos fossem microscópicas safadezas 

Multiplicadas pelo espetáculo desse teu jardim de delícias;

E minhas mãos, duas bocas feitas para o teu prazer.


Já a língua, é utensílio  perfeito para alegrar 

Nossas tardes de ócio improdutivo.

Ai que rego rêgos, saudando tuas entradinhas de risos de axilas.

Minha língua é busca, esperançosa que te cultive,

Até ouvir de volta a valsa-dança do teu gemido. 

(LÍNGUA!) Não é órgão que force entradas, ou simplesmente se serve;

Não fosse perigosa, estaria fora da boca.

(E sempre a prefiro para o prazer do que para a difamação)

Carne disposta a ser acasalada em outra carne-casa despida, 

Que me convida a que te abra sem pressa,

Molhadamente, o invólucro desse corpo desejo.


Nos esfreguemos leves em carícias sobre genitálias curvas,

Geografia sinuosa em que tudo é melosamente pleno, 

Sedoso, com você tudo é farto...

Teu corpo é tempestade que reivindica o toque,

Que modifica nervura e temperatura ambientes.

(Igualmente dengosa e bruta, assim te quero)


Entre enriçados jardins é que zelosos liberamos as flores, 

Odores e fluidos sonorosos à toda língua que lambe e arde.

(Por cima ou por baixo, de frente, lado ou de costas: pouco importa)


Vestidos e comportados, 

Em meio a outros, nossos corpos se contiveram 

Em respeito aos preceitos da boa sociedade.

Mas quando te via, assim pensava: ai, delicioso fogo-jardim entre tuas pernas,

Que logo meu lábio carnoso se junte às mais carnosas poupas!

Que se misture à lubrificação de tua buceta, a saliva de minha boca!


Se é luar, mais os bichos ofegam precipitando em cio perpétuo.

Mas talvez tudo tenha um quê de sagrado.

Pois que todo um ritual nos faz e renova,

Porque morremos e nascemos em completo ciclo.

Depois de consumado outro ato de quatro, 

Nos pomos a imaginar nosso próximo regalo...

(Por pouco nos rasgamos.)


Mas se é ritual, que o gozo seja efeito do desregramento

Diante de tantos podres pudores que nos curvam.

Que seja ritual de tremor! Que tome a carne em espasmos,

Movimentos de mãos que não dão tempo ao corpo sequer chegar à cama...

Tantas vezes enlaçamos já no chão de chamas, cozinhas, corredores e escadas.


Suor, cócegas, hálito; e o vigor-deleite reconquistado 

Após as guerras do cotidiano;

Repouso manso de doçura e sacanagem. 

Entre tuas pernas encanto encontro,

Enquanto elas se desmancham salgadas em gemidos quentes.

Sufocamos de corpos lençóis embaraçados; peitos em chiste...

Sombra, cama, pressão!

Displicentemente... Foder até que o talo adormente!

sábado, 20 de março de 2021

Utopia


Meus versos se rebelam contra a indiferença,

E ainda que sejam somente tinta ornando papel,

Minha vida, encolhida, através  deles se expande

Para que além dos vãos estreitos da melancolia.

Para além do vitral das conveniências,

Possam os corações alheios conferir utilidade à minha alma pequena.

(Que o extraordinariamente humano seja um "nós")


O que me pesa o peito do desconhecido?

Acaso me afeta a dor do ancião que queda, o cão que agoniza, o gato, a fome do desvalido, a criança que chora ou a doença do desenganado?

Não mais posso vergar por meus pífios caprichos

Após ter girado a chave que destranca a mágoa da indiferença,

De forma que a idade já não define o tamanho do nosso descontentamento.


Sem fama, poder ou dinheiro, o desejo de sermos outro menos roto que o "eu" de antes

Nos degreda, é bem verdade.

Mas não desistamos.

Se quiserem, nos enterrem com todos os revolucionários anônimos, 

Encantados de afeição pelos mundos que ainda não são,

Pelos mundos em que já não há balas ou mísseis,

E nem mais sangre o inocente.

E que seu sangue não mais comunique ao ser alguma pretensa verdade.


Queria que qualquer coisa nos modificasse,

Sem violência ou falsas verdades que nos oprimam.

Acorde para que o sonho dormente se manifeste.


Tragicamente insatisfeitos como somos,

Sei também que trocaremos por presentes as nossas mãos...

Nada mais que isso...

E o que me faria mais feliz nesse mundo de tantos abandonos?!

Mundo de tantas omissões, crueldades e esquecimentos.


Ainda sou desses que sentem saudade do que não viveu.

Mas sacio esse sono das eras 

Pelos afetos que nos encadeiam docemente num mais além.

Sejamos exilados apenas do que é sórdido na falsa solidez desse agora.

segunda-feira, 15 de março de 2021

Peregrinação

 

No princípio não era o verbo, e Deus não estava com ele, ou sequer era ele.

Apenas se via imensa folia de deuses, 

De luz e treva comungando indistintamente moradas sagradas.    


Enfastiados de volúpia,

Viram que seria belo e bom,

Acaso se pusessem a divertir d'outro jeito,

Fazendo mundos e enviando seres para eles.

(Infelizmente, naqueles tempos não era  de praxe consultar os enviados sobre as próprias prioridades)  


Mas porque em verdade nem tudo fosse absolutamente belo e bom,

Nossa prioridade enquanto mera criatura 

Tantas vezes fora a da mariposa capturada pelo brilho excessivo da lâmpada... 


Cismados, alguns seres nascidos, talvez tenham pensado: 

"Essa luz infinda nos esmaga." 

E principiaram a aperfeiçoar a obra divina,

Distorcendo a seu favor a densa cor que destina, intensa de amizade e intriga...

E sonharam fazer do brilho dengo, desses que curam e afeiçoam a retina.


Mas, imperfeito e doloroso além, como são os sonhos que valem,

Permitiam que mesmo alguém sem ouvidos para deuses como eu, 

Vislumbrasse qualquer coisa de eterno quando lento caminhasse.

Pois é caminhando que se enxerga o ausente e o silêncio,

Tanto mais se é noite que se estica demasiadamente.


Belo e bom seria mesmo, se o gentil se alevantasse revelando a natureza, 

E da criação, que toda ranhura e cor, desejo e fauna 

Em pedra, fogo, e água,  pudesse amada com igual zelo. 

Mas a tenacidade que nos reivindica urgente, já me seria agora suficiente:

Compassar meu caminhar para que hirto de paixão seja leve,

Mesmo se breve, 

Mesmo que ainda não compreenda o manhecente verão que me abre.

E do mesmo modo, sem que tua cor me seja muito quente ou febril,

Que a roupa-aurora com que me veste preceda o verbo que me revela.


De sorte me via por entre eras, pecados e vidas, como os justos, como outros, 

E como tantos, crendo eu ou não se há razão no desassossego do mundo,

Igualmente perdido seguia.

As vezes, quase sem o saber redecorava-me por fora e por dentro, 

Como quem se ergue imaginando ficar a altura de objetos ansiados.

Um colorido semi-desnudo ainda me atordoa,

Sublime... Talvez o chame: "Há-de-vir"!


Fascínio humano, teimoso em ser o que tece, e a teia em que é tecido....

Assim tem sido, assim será depois que esse poema perder seu criador, 

E dele já não retiver senão um fantasma das paixões, teias, e destino que o animaram.

Até porque, queiramos ou não, de flor em flor, de árvore, de pedra e espinho,

Adornos da peregrinação dos vencidos também nos fazem silenciosamente.


Mas há esperança, pois que miúdos os visgos, 

Dos tempos dos desumanos desmandos de genocidas,

Por mais que grudem, já não embotam como gostariam

Nosso sonho. Seremos mais que ontem. 

Se alevanta outra vez a voz,

E nada poderá nos fazer absoluta miséria ou abatimento,

Só pelo aparente efeito devastador, quando a dor deforma.

Ai, que a dor dê forma!


Temos um instante e um grito à espreita,

Já quase brandindo em nossas vísceras,

Atávico  duma fome de toda vida...

E nos cuidamos, uns aos outros, em gomos... Frágeis, tão frágeis!

Ainda assim já fomos, ainda assim, seremos...

Há distâncias que matam só pelo amor de que elas não findem.


Esse amor que sinto, amor de tudo que é humano e já não basta,

Amor sem aferição de motivos, como deve ser toda afeição.  

Deslizamentos, perigos da penedia, mais um tanto de tropeços... 

Entre paragens verdejantes e charcos, desertos e devaneios rios. 

Caio-me inquieto no que repasso no impossível. 


Estes barcos peregrinos, pequeninos,

Por favor sejam o que não fui.  Amem como não amei.

Assim como talvez eu tenha amado os amores de outros 

Que antes de mim reivindicaram-me para seus sonhos.

No último minuto.. . No inusitado verão...  Quais dos amados deuses ou mortos voltarão?