quinta-feira, 16 de dezembro de 2021

Manhã de Natal


"Por que nós nos alegramos em um nascimento e choramos em um funeral? Porque não somos a pessoa envolvida."

                     Mark Twain 



Manhã de Natal, antes do café. O dia clama pelo Especial de Fim de Ano: Solstício de Nazaré.

Já sem pressas, passas, figos ou rijos rituais... Agora sim, nos entreguemos às saturnais.

Alguém na casa acorda mais cedo, abre armários e geladeira, prepara rabanadas e anda pela sala à remexer presentes ao pé duma árvore de plástico vinda de país distante. Entre enfeites de esferas, guirlandas, sinos e bengalas bicolores, harpas, flocos de neve, laços de fita, sapatinhos de pano e papel, estrelas e encantados, candelabros e, alhures, animais, nos perdemos. Os especialistas dizem que os tons verdes, carmesins, chocolates, rubros, brancos, vinhos, dourados, prateados e escarlate, isso tudo recheado com muito glitter será a tendência de cenário desse início de verão - assim como de todos os passados abaixo do equador. Pessoalmente sempre adoro, hipnotizado, as luzes que brincaram de piscar noite inteira.

Mas voltemos um pouco no tempo...

Mal começara dezembro, e resgatamos caixas empoeiradas em fundos de baús dos festejos passados e, o que faltar, compramos de novo na Av. Sete, Barroquinha e Baixa dos Sapateiros - aqui "ninguém  é menino". Não há festa mais Made in China que o Natal.

Mas tomado por velhos espíritos natalinos, é como se eu ainda tivesse saudades de coisas que não vivi.  Tambores de pele e madeira, fogos e céus estrelados; saudades de silêncios e velhas charneiras. Serão atavismos fetichistas que em mim guardo?

Todavia, ao invés de abater um grande peixe, res ou fera nos liames verdejantes da floresta arteira, como fizeram por séculos  nossos ancestrais, nas vésperas da ceia nos arriscamos, todo ano, heroicamente entre perigos de empórios e Shoppings Centers, essas modernas selvas para caçar presentes.

Lutamos ferozmente: primeiro, com os dilemas sobre o que dar à quem; depois, com as atrozes contas: se faremos à débito, pix, papel, escambo ou cartão de crédito - a difícil escolha das armas; em seguida temos de brigar, brandindo punhos e imprecações por uma vaga no estacionamento abarrotado - quase diria, uma vaga no inferno; e, após tudo isso, lembrem, precisamos ainda sobreviver à caça mais astuciosa: lutar e vencer vendedores, dores e falsas promessas, lançando feitiços e percorrendo quilometros por horas em busca da temida e cobiçada lista! 

Isso tudo, veja bem, em meio à multidão furiosa e sanguinolenta querendo mais. 

(Mas altaneira; quase fofa, e excitada de encantamentos consumeristas) 

Pra finalizar, temos de montar cardápio e comprar ingredientes. E se os deuses, deusas e o clima do planeta ajudarem, quem sabe na Ceia entregaremos um prato minimamente decente.

Vamos a ela?!


Não sou fã da hora da ceia... Esse texto é mais sobre os doces atentados à tristeza que ocorrem depois dela...

Mas vamos lá...

Dia 24, clima de festa, muitos afetos e alegria.  Procedimentos tecno-mágicos meticulosos são aplicados para que os pratos fiquem à contento; faz-se multirão de limpeza, ocorrem as compras de última hora, garante-se a segurança para que meliantes pets e humanos, gulosinhos, ansiosos e indisciplinados não desfalquem antecipadamente ingredientes. Enfim, muita agitação e função na cozinha e casa como um todo. Todos compenetrados em seus papéis na missão - inclusive meliantes humanos e não humanos. Muita apreensão e euforia se misturando, mas não vou mentir, bem me lembro: à noite, depois de tudo, caí em pecado.

Foi aí que abracei o capeta! No momento mesmo em que disse pra mim: "Sabe de uma, Eu mereço!"

Tomei uma gelada com queijo cuia, porque ninguém é de ferro né? ! Hummmm... 

Daí o bicho pegou! A gula e o vinho... Fofocas, a vaidade, sincericidios etílicos, eróticos - luxúria - e poéticos, além de impaciência e preguiça... Tb inveja dos presentes dos outros, medo de ter gastado em excesso e receber presente "péba" - avareza - são o maior normal nessa hora de amor profundo. Inesquecível que nem unha encravada com sapato apertado... 

Na moral, foi ladeira abaixo...

O movimento é  sensual, ostentação é a parada... Devagarzinho até embaixo...


"Na real"?! Acho que o soteropolitano não curte lá muito o Natal.

(Dizem por aqui tudo vira Carnaval, e tem uma hora em que o povo alopra geral, decide levar até de manhã - inclusive, atrapalhando a invasão domiciliar noturna de Papai Noel -, e começa a confundir o velho Santa Claus com Bel do Chiclete, Ivete ou até Carlinhos Brown)

Se ligue "miserevê". Pegue a visão. Tá "vacilano"?

Meia noite, Missa do Galo, todos em pecado, há-pagão geral?!

Essa coisa de energia de que fala a "galera-coelba" do esoterismo, não é mentira não. Rola mesmo véi...

(Mas somos só limitados humanos e, tanto que, também tanto amamos, "na vera" mesmo e "de-com-força")


Belém blem blem pra gente!


E anote ai; Quero meu momento íntimo com o Cristo-Noel velho-criança gorduchinho que nasceu.

Na manhã do dia 25, quase ano bom, subirei telhado para admirar a Cidade, mesmo que ressaqueado e peidando à chester com frutas cristalizadas;


Mas se ligue "minha pedra", se vc achou que até aqui foi chato, se prepare, porque agora vem aquela parte existencial chata pra caralho do texto em que eu choro "e as porra". 

Sem falar do embaraço que pode se tornar pra esse povo "esnobe que nem eu" - acadêmicos de esquerda das humanidades, e de pouca fé -, confessar esse crime hediondo, esse amor quase cafona e sentimental pelo Natal...

Mas se chegou até aqui, te desejo força guerreira(o) que me lê! O texto é exagerado mesmo; verossímil, mas um tanto ficcional também, muito de classes médias nele, às vezes kitsch, mosaico beeeeemmm colorido de coisas aparentemente desconexas, que nem Natal mesmo.


Muito bem...

De longe a cidade parece gospel papel.

Eu até atrevi do dia a imagem,

Presépio astuto de beleza e crueldade...

Quisera eu fosse um passarinho;

Sou sonho agitado.

Após fitados e fatiados que nem panetone todos lugares ermos e ninhos, sofro só de imaginar tudo que a vista não alcança.

A data remete ao fluxo de morte, vida e renascimento, de reconhecimento de si e recíproco diante desse movimento incessante; desse acertar as contas com a gente, e nos dar conta francamente da difícil engenharia entre o que queremos, podemos e precisamos. Mas também do que demandam da gente.

(Será por isso que os Três Reis Magos encontraram em meio à noite no deserto o Messias Pequenininho? Perseguindo o impossível?)


Em meu divã não há colirios, cirios, nem coleiras, apenas flores, espinhos, algumas lanças e pederneira. Mas tb há dança e carinho no cadinho.

Meu divã é estômago, estrago que arde e quer vinho. É a cidade com todos nela e suas maravilhosas navalhas dos anjos e diabinhos, com Jesus Menino protegido a nos proteger dos perigos da manjedoura imóvel. 


Ah quantos presentinhos de Reis ainda há de nos dar a memória... 

Dar e receber presentes é o que tece a paz e amor universais entre as gentes.


Há sol, espreguiço ante o espelho em Mi bemol.

É quase janeiro. Sinto-me tolo feito Noel que não soube ler a escritura dos tempos nos versos alheios. 

Não pude dar o que queriam. Alguns sapatinhos ficaram frios e vazios... Talvez alguns presentes tenham sido trocados, extraviados ou roubados, quem sabe... 

Meu papel aqui pouco tem a ver com a verdade,

Mas com os muitos possíveis muito além da minha inútil medida.

Isso talvez tb seja a tentativa de converter nossa miséria em arte.

Salvar pelo sonho minha pífia cristandade?


Só sei que o café que ontem à tarde ardia, agora esfria. 

Por onde irá aquela que outrora foi tão boa companhia?

Alguns estão nesse momento celebrando alegres com aqueles que momentos atrás repudiavam.

(Pessoas raramente "decepcionam")


Acendo luzes e velas e, ao meu modo, também celebro.

Bela ceia bom barqueiro, cantarei todo aquele que tb quiser celebrar, e me celebrar, independente das dinastias desse longo mar.

Há muito amor num mundo que tb é mentira e dor.


Ainda te mando mensagens em garrafas ao mar, e recebo as tuas, com desejos de danças e dias risonhos.

(Para nós, nada menos que o melhor)

Ano que vem não virá de novo o fevereiro e, como não farei anos, não ficarei mais velho dessa vez.

Farei apenas uma canção de amor pra esperar a volta da alegria. Isso não é a periodicidade necessária do Natal?! Essa festa tão cristã quanto pagã?!

(Um dia farei amor com ela)


Mas o ano que finda não aconteceu nem acontecerá ainda.

Tive dias duros e escolhas complicadas. Não me iludo. Nesses dois últimos anos talvez tenha perdido mais amigos, parentes e até mesmo sanidade e conexões afetivas que nos 10 anteriores. Muitos perderam muitas coisas, e nem sempre é fácil encontrar razões pra continuar.

Morte, finitude, perdas e renúncias compõem a própria possibilidade da vida.

(Mas voltemos à leveza, por favor)


Ahhhh, resgatei o Natal já mais velho e cascudo numa casa em que "o negócio é sério"! Rabanada e biscoitos, nozes e chocolate; panetone salgado tostando na chapa de manhã com queijo cuia e apresuntado. Tudo partilhado, tudo me liberando pálpebras, papilas e pupilas. Se tem criança, melhor ainda! O riso solto e resenhas, presentes e pilherias pra trocar. Quem mais gostou do quê, vamos confessar... As vezes há promessas e acidez estomacal na balbúrdia da mesa quente da cozinha. Alguém bebeu demais, já deu dez de relógio, mas não descola da cama - houve dia em que fui esse tb... Quem têm Magnésia Bisurada, Novalgina ou Sonrrisal?  E a depender da família e das besteiras que fizemos, vale o combo: Magnésia+Engove+Rivotril né? 

Aquelas canções de melodias agridoces, meio alegres, meio tristes, falam de neve e bonecos de neve, pinheiros, frutas, comidas, lugares, objetos e seres que em sua maioria nunca vi, mas que a mim parecem íntimos desde sempre. Esse doce folclore que veio do norte. E há quem goste mais, quanto mais as fantasias saem jazzadas da fornada musical.... 

(Tudo bem, o vermelho vem da Coca Cola e a Finlândia só embarcou nessa pra atrair turistas)

Quase vou com tudo nessa lúdica viagem transcultural.

Mas não posso me enganar, esquecer. Nesse ano em particular há quem não tenha pão, paz e, muito menos queijos, presentes e vinhos para partilhar.

Mesmo assim, se é manhã de Natal, presentes espalhados e sobras da ceia perfumam e colorem especialmente a casa de quem teve o privilégio da mesa inteira.

(Seria fácil me culpar. Prefiro lutar  pra que todos possam ter)

A família que temos, aquela a qual confiamos nossas mãos, é a medida mais imediata da celebração. Mas há tantos outros que tb importam... E tantos que já se foram...


Nessa manhã há sol longo e lento, e galos conversando, convocando em alto som o novo; tudo faz tudo mais especial nessa euforia em movimento...

Para os galos seria só mais um dia – exceto porque para eles, galináceos, nesses ciclos festivos aumentam as chances de tombarem nas assadeiras de todo o mundo.

Galináceos do mundo, não uni-vos!


Porém, se Papai Noel - São Nicolau - não existe, por certo é a ficção mais influente e lucrativa do planeta. 

Bom Velhinho vermelho e barbudo youtuber, nunca me esqueça. 

Ai que mesmo depois de adultos continuamos a esperar seus presentinhos, quem sabe pedidos em "amigos secretos" - esse Papai Noel para crianças crescidas que nem a gente.


As más línguas dizem, rolaria até certa treta com o tal Jesus do morro vizinho, o homenageado mais velho, filho do homem, cordeiro do mundo. Mas pra quê tudo isso!? Deixa os caras trabalharem juntos: pagão, moderno, antigo e cristão. Tudo em prol e em paz, compromisso pela comunidade... “É nóis, tamo junto! Comunidade sempre! Os dois representam!” 


Enfim, na infância tive de acreditar nele Noel até mesmo pra ganhar presentes, ora bolas... complô planetário poderoso como esse nunca se viu... 

(E como foi bom ter sido assim enganado)

Hj quando me enganam, logo descubro que tive cartão ou celular clonado!


Adulto, compreendi, Papai Noel agora sou eu. Acho que já li algo assim. Desculpa o plágio. Esse encantado já mais humanizado talvez nos permita uma identificação que seria mais difícil de realizar com a espartana figura do Cristo em fuga, nascendo numa gruta em meio ao rude deserto. No Natal, talvez queiramos, atualmente, só podermos fugir dos desertos que por vezes têm sido nossas próprias vidas. 

O Noel que conhecemos foi inspirado num bispo do século IV da Turquia que distribuía sacos de dinheiro aos necessitados. Um provedor, protetor caridoso, cuidador cristão-burguês quase asceta e celibatário, mas apenas quase... Porque na composição de sua função de colo e relaxamento diante das durezas do trabalho e cotidiano, inventaram uma Mamãe Noel que, aliás, é frequentemente sensualizada nas lojas no fim do ano. Além do quê, o Papai parece eternamente sorridente e moderadamente embriagado - diria, de vinho... 

É como se tudo correspondesse à composição contemporânea de uma vocação pública adequada ao instante festivo extraordinário, necessariamente efêmero e esperançoso de um mundo melhor que não se realiza; senão que, periodicamente, em ato-memória se performatiza-ritualiza-teatraliza. Composição regada a um desregramento moderado similar ao que geralmente nos oferece o consumo recreativo. 

(Mas o sociólogo deve parar por aqui)

Enfim, digo que o Noel sou eu porque, entre outras coisas, bem sei que ando meio de saco cheio, tô mais gorduchinho, me forço às vezes o sorriso por quem amo, me sacrifico e trabalho por desejos que não são meus. Conto ficções pra acalmar e peço ajuda aos "anões" que me salvam todo dia. Preciso trabalhar, senão não haverá presentes. Mas derreto ao sol escaldante de fim de ano nos trópicos sem renas ou trenós pra me carregar, me espremendo pra entrar por passagens que nem sempre me cabem, muitas vezes sem ser desejado, e de onde às vezes saio sujo e empoeirado. Sem falar das vezes que não gostam dos meus presentes e mensagens...

Meu pedido: ser melhor Noel esse ano, do que no que passou - só pra que me façam ainda mais e mais gorduchos pedidos.


(Deuses estiveram aqui e me falaram contos de fadas, emprenharam meus ouvidos de risadas e gostei. Eu vou te contar tb)

Dizem que lutar com palavras é luta vã.

Todavia, se sou incapaz de ferir ou matar,

Tb já não sirvo pra rezar.

Mas se algum deus é Amor,

Seu profeta é poeta.

Sua "bíblia", poesia:

Que queime no inferno toda hipocrisia. 

Deuses falam comigo preferencialmente nas manhãs, todos os dias.

E eu que não sou ninguém, vivo à revelia.

quarta-feira, 15 de dezembro de 2021

Natureza


Nossa contrariedade, por onde anda? Ah, nossa contrariedade nada importa.

Apenas importa o jardim que a mão comporta, mesmo se dói demais.

Nossa vontade, pouco faz.

A dança da natureza é a mesma, nem justa nem injusta.

Ora singela, ora bruta com o vento, pedra e, todos nós, animais.

Disse o sábio sapo: seja como o queijo! Seja o queijo!


Ser intenso --  palavra charmosa para qualificar ansiosos e vinhos -, é viver esticado que nem queijo esquentado na desmedida: entre acordar com desejos e planos como se o dia tivesse mil anos, e à noite ir pra cama como se não fôssemos acordar nunca mais.

Mas o importante mesmo é: no café da manhã, não sejamos a "peçoa" que ficou sem o último pedaço do queijo de verdade, nem aquela que o comeu.

Nessas horas, entre pecadores gulosinhos, ai, ai tragicômica vida... A coisa fica séria, ninguém é de ninguém... E pouco importa o dia de hj ou o amanhã... Evaporam-se os grandes planos. 

Apenas aquele delicioso e efêmero pedaço de queijo cheirando tostadinho na chapa pode dar o verdadeiro sentido da vida.