domingo, 15 de agosto de 2021

Despertar quente-frio em Canavieiras

 


"A felicidade vem em lampejos. Tentar fazer com que ela dure para sempre é aniquilar esses lampejos que nos ajudam a seguir em frente no longo e tortuoso caminho da vida."

Friedrich Nietsczhe 


Embrulhado em grossos cobertores, vulnerável feito pupa acordo.

Não ouso rolar para o lado vazio da cama por medo do frio.

Isso já merecia um poema para um nordestino no litoral baiano.

Mas quem sabe o calor das palavras baste para lembrar meu lugar tropical de exuberâncias,

Assim como a labuta e algazarra dos bichos no quintal, e os sabores na cozinha.

O sol chega tímido anunciando o dia, as folhas; pássaros e insetos em folias de  empanturramentos e cópulas;

A vida segue seu propósito em cadeias alimentares contempladas desde a janela orvalhada; 

O perfume das folhas e flores e terra contrasta com o interior da casa, com seus aromas de móveis e comidas, com minha pele vibrante e já um tanto enrugada; tudo parece perfeito.

Abraço vagarosamente a cadelinha Diva que vive com a gente. Tão gentil que me perco na sua civilidade adocicante de pelinhos macios, em seus olhos castanhos claros de ternura inocente, contagiante.

Ela me acorda com patinhas, percorrendo-me com esses olhos de que sou o ser mais especial dentre todos no mundo.

Agora a pouco salvou-me da tristeza. 

Nessa manhã, sonhava que um espírito mau me observava querendo-me em algum inferno de alguma religião perdida de algum deus vingativo e carente de atenção.

Espero esse despertar de lambidas e versos não rache o ar de quenturas em meio ao frio;

Senão minha mãe me mata se algo quebrar na casa, pois ela no fundo sabe que ainda sou o mesmo menino curioso e estabanado; parece que aos seus olhos permaneço um tipo de bebê gigante apenas um tanto mais atormentado.

Faço o café enquanto esquento as mãos no vapor que escapa da chaleira, depois verto água por sobre a borra no papel afunilado. 

Ponho tudo no quente-frio; bebo lentamente até aquecer a entranha, enquanto os bichos no quintal trabalham em algazarra.

A vida é  metade tragédia,  fortuna, metade virtude, ímpeto.

Meu corpo desperta com a corrente dos eventos banais que me mantém vivo. Meu corpo desata meio impaciente; penso no que será o dia, como hei de sobreviver a ele. Como ser duplamente grato e desapegado, liso e suave, e  forte, com a fome dos passarinhos?

(Quem disse que eles  comem pouco é  péssimo ornitólogo.)

Nessa cidade do sul baiano aprendi tempos atrás a nadar, andar de bicicleta e beijar.

Nem todas as coisas igualmente bem, mas tem me servido. 

(Coisas que não se esquece)

Singela, charmosa cidade perfumada de cacau e pescados e flores, e frutas que amo um amor profundo de brincadeiras de infância.

Aqui meu corpo expande para além do que permite a grande cidade.

Minhas mãos no quintal agarram objetos como fossem prensas, passadiços, massaricos brutos e aligeirados como sou.

Mas não ligo...

Devoro ovos como fosse uma raposa, urso, cobra, carcará  ou guaxinim. Gosto de todos esses bichos de verdade.

Sou metade maldade, metade campo.

Vou à praia com meu irmão nadar, contemplar; caminhar por sobre areias irisadas ouvindo o som da maré, das ondas revoltas de chuva e mangue carregados pelo Rio Pardo.

Fito meu corpo bruto cheio de fibras tensas, de nervuras e sangue fluindo ao pulsar de querências ainda juvenis; de carnes fremindo e chiando

Desperto um pouco mais e tudo parece breve; sonho por que risco. 

A verdade é  turva e turbulenta para quem viveu mentiras demais.

Espanta a cólica o poema-vida, aurora-sinfonia de seres e ritmos dos elementos naturais.

(Antes que o dia seja)

E aprendo nesse mais um dia a pesada tarefa de ser leve.

Grandeza ordinária dessa vida de pequenos gestos

Entre gentes formosas nas quais esbarramos nos corredores de nossas moradas, 

 Ou na amplidão da rua, encruzilhadas de caminhos alguns mesmo que fininhos.

A verdade é rara.


Ouço papagaios e periquitos em revoada...

São lindos...

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