terça-feira, 30 de novembro de 2021

Adeus Paulão (homenagem póstuma à Paulo Roberto de Sales Ribeiro, àquele que por tantos anos foi o meu sogro)


Minha morte nasceu quando eu nasci.
Despertou, balbuciou, cresceu comigo...
E dançamos de roda ao luar amigo
Na pequenina rua em que vivi
.

                                      Mario Quintana

 Non videmus manicae quod in tergo est

O que fica da vida, da passagem de uma pessoa pela nossa? Existiria uma coisa feito o destino? Haverá a hora certa da partida? Como e quanto se lembrarão da gente? 

Hoje tudo ficou confuso, o mundo desabou. Como se não tivesse havido um fim, mesmo depois de o fim ter sido decretado, fosse pela aridez da natureza, pelas faces quebradas, rituais de despedida ou relatórios médico-periciais. Tudo dizendo "acabou", enquanto, simultaneamente, éramos tragados pela presença do que se fez ausente. 

Revivemos várias vezes os eventos, procurando por erros e respostas... queremos um sentido e, quem sabe, algo que ajude a expiar qualquer culpa ou remorso. E há Tb quem deseje esquecer. Mas será que "esquecer" não é só um nome diferente para o que mudamos do que ficou?

Gostaríamos de voltar no tempo... 

Mas é impossivel e, pra seguir, vamos redecorando escombros e pintamos a sala de "estar-bem",  enquanto o passado permanece tão misterioso quanto o futuro, como se os momentos todos se misturassem.


Paulão, como era chamado pelos chegados, era o tipo boêmio boa praça, não gostava de polêmicas esticadas, nem apreciava grandes refinamentos intelectuais. Tímido, falava pouco e em geral tinha um sentido pragmático, mesmo que muitas vezes tradicionalista, a respeito de suas ações e existência, mas falava e lidava com todo mundo. Era um sujeito simples tb nos gostos, e gostava de seguir regularmente suas rotinas. 

Era à moda antiga: devocionalmente religioso de um catolicismo sincrético e piedoso, herdeiro de uma Salvador de redes familiares e vicinais extensas, e que já não existe mais. Paulão acreditava, um tanto aristotelicamente, que o ser das coisas as destinava aos seus lugares predeterminados na sinfonia do mundo, assim como acreditava que qualquer palavra empenhada em praça pública valia mais que documentos assinados e registrados em cartório. No mais, para ele a beleza habitava o simples. Era o tipo que ainda acreditava ingenuamente, de uma ingenuidade bonita de se ver, e cada vez mais rara. Do que pude conhecer, isso resume em boa medida a sua "filosofia". 

Hj Paulo nos deixou. 

E hj, peço desculpas a ele por trair seu legado.  Hj. não acredito, não há paz, mas desilusão. Amanhã acreditarei, mas hj não. Quero ser triste e praguejar contra o sistema, e toda essa des-humanidade. Hj. sinto raiva. 

Paulo não vinha lá muito bem fazia tempo. Não era mais o mesmo de anos atrás. Parecia cada vez mais frágil e cansado, e um tanto triste às vezes. Acho que a pandemia o quebrou, como a muitos. Mas "tenho pra mim", ele gostava de viver.

 Estamos tristes.

Não que fôssemos os grandes amigos pra sempre, nós dois, isso não aconteceu. Éramos, de certa forma, incompatíveis até nos times, roupas e cervejas. Talvez o afeto mais intenso, mais profundo entre duas pessoas necessite de uma estação propícia de cultivo. Acho que não foi nosso caso. Mas nossas diferenças nunca impediram o convívio respeitoso e o desejo pelo bem um do outro, pelo bem recíproco, havendo por vezes pequenas rusgas por certo, mas tb auxílios gratuitos de parte a parte, e até momentos de verdadeira camaradagem, sobretudo em festas de família. 

Convívios longos costumam nos alertar demais para defeitos dos outros, e nos anestesiar para os nossos próprios. Ele, humano filho de Deus, tinha os dele; eu, os meus... E não posso esquecer, o recém chegado era eu; ele, o pai da moça! Ele,  quem me recebeu na família à qual devo tantas lembranças felizes.

E, em momentos como os de agora, sempre fica um vazio, deixa tristeza, e a dor maior que atingirá a outros nos machuca por tabela. À cada um caberá viver seu luto como for possível, e isso às vezes é solitário. Luto é tb cuidar dos vivos. E quem puder, por favor, abrace, se abracem. 

Perdemos o manual público do que fazer nessas horas quando decidimos, civilizatoriamente, pela liberdade. Liberdade para até mesmo não acreditarmos sequer em Deus, deuses, rituais, ou qualquer algo de eterno. E em tempos de positividade tóxica, celebração do corpo sarado, fotos no Insta e juventude eterna, adoecer e morrer e, pior ainda, falar da morte e do morto - essas palavras tabus -, tudo isso bem pode ser visto como sintoma do derrotado; maceração mórbida, inútil e dispendiosa. 

A morte é injusta, terrivelmente dolorosa. Às vezes queremos não pensar, dar um basta em nossa própria dor da perda - e, claro, chegará a hora em que isso precisará acontecer.  Mas penso que silencia-la apressadamente mediante decreto, seja por medo, repulsa ou qualquer razão, pode ser perigoso.


Um dia, isso têm anos, namorávamos torridamente, eu e sua filha, deitados no verão da varanda do saudoso Village de Lauro de Freitas, o mais antigo. Paulo nos flagrou acidentalmente, e só eu o vi. Gelei e pensei que fosse morrer naquele dia: de bala, susto ou envenenamento... Era início de namoro... Paulo, assim como eu, fingiu que nada viu. Nada nos disse e seguiu vida. Continuou me tratando como sempre... E eu, devolvi alegre e aliviadamente o presente. Talvez ele fosse menos rígido do que dava a entender em sua timidez sobre essas coisas, não sei dizer muito bem. 

Enfim... Paulo estava mais pra pacificador, era da turma do "deixa disso". E, muito menos, alguém o imaginaria levantando a mão pra ferir qualquer pessoa.

Ele era o tipo de figura do bairro que não brigava com quase ninguém, prestativo e negociador, urbanoide corretor de imóveis, caminhante da orla que todo mundo conhecia e cumprimentava, uma espécie de "monumento", discreto sem dúvida, ou presença local do aprazível Costa Azul. Acho que ele adorava esse bairro e, pelo que sei, vinha exercendo sua corretagem quase que exclusivamente dentro dele nos últimos anos. 

Muito bem, enquanto que após o lamentável afastamento forçado, tempestuoso e imprevisto ocorrido em maio de 2021, eu tinha “de certeza” que logo nos veríamos, a vida tramava pelas nossas costas suas próprias prioridades, e antecipava nossa derradeira despedida. Porque, estando em outra cidade, não pude sequer me despedir ou acompanhar o que seriam seus últimos dias. Só me restou escrever, e me consolar com esse texto póstumo como fosse nosso funeral e vigília, minha e dele. Nosso adeus possível. 

Em toda partida haverá um pouco da gente que se vai. Penso, seja uma troca. Quem nos deixa exige, como condição de doação mnemonica amorosa, levar um pouco de nós: mais nos tira, quanto mais nos dá... E a cura da perda não tem receituário. Trata-se muito mais de cafunés, paciência, conchinha e afagos, e tb de nos contarmos histórias sobre quem se foi, até irmos desapegado enquanto reelaboramos a perda aos poucos. Isso a que se chama luto. Porque narrar é dar colo de palavras... É dengo do tempo do verbo.

De resto, terei daqui pra frente que "vê-lo" pela porta da memória do quarto da suíte do Icaraí. Quarto esse em que costumava ficar em frente à TV, sobretudo nesse tempo de pandemia, e onde adorava assistir seu glorioso baêa. Mas prefiro ainda sua imagem ao volante quando íamos para o Village, e se faziam aquelas compras gorduchas. Paulo, nessas ocasiões, nunca aceitou qualquer contribuição minha. 

Era perigo de segurança e saúde públicas na cozinha; mas era massa ver seu gosto por pizza, comidas festivas como queijo cuia - o chamávamos Dom Ratão, a propósito dessas horas rs - e música, inclusive Roupa Nova e The Beatles...  Sim, ele gostava de cantarolar! E tinha especial afeto pelas crianças - chorava emocionado, copiosamente, aquele homem quieto e convencional, assistindo The voice kids. Além, é claro, dos seus bordões engraçados pra caramba. Ou como no dia em que fomos a um templo Mahicari, e que eu, pesquisador da religião, não conhecia; e mesmo quando ele sorria estridente em conversas com seus amigos mais chegados. Tb adorava perfumes, Globo News e, com o passar do tempo e acontecimentos, se tornou, para nosso orgulho, e desespero de muitos dos seus amigos, um anti-bolsonarista ferrenho e convicto. Da mesma forma, quando Paulão gostava de uma coisa, repetia até "furar o disco"... 

Agora, os objetos por ele utilizados solicitam em vão sua presença - seu toque e olhar, sua pressão muscular, calor corpóreo e ordenação motora únicas, essa impressão digital do corpo que faz ranhuras e morsas indeléveis nas coisas; seu mana, energia vital singular, sua aura. E todas elas, coisas, tb desaparecerão ainda cheias da esperança de que um dia voltariam a corresponder a demandas humanas, enquanto coisas úteis, necessárias e desejadas por ele, para ele.

Não tenho palavras, imagens ou procuras suficientes nessas horas. Acho que nunca saberei dizer adeus, talvez por ser homem de pouca fé. Só acredito no que ainda podemos fazer, e o adeus é  uma desistência compulsória daquilo que ainda não foi. (Num duplo sentido: do que ainda não foi completamente embora, e do que ainda não aconteceu, do que foi apenas potencial futuro). Mas eu quase sempre quero apostar que podemos fazer melhor numa próxima vez nesse mundo. Temos tudo ainda e tanto por fazer. E há remorsos. 

Escrevi noutra ocasião, "não nos culpemos por sermos feitos pra sentir... Ser de carne é também falir..." E antes que a corda arrebente, não esqueçamos do espaço em que se guardou leveza. Amanhã a tristeza há de ir.


Já nossa derradeira despedida, minha e de quem me lê, posterguemos, como se diz, todos os dias em que continuamos, até vivê-la num brevíssimo. 

Espero, sinceramente Paulão, que teu caminho de agora seja mais sereno e silencioso, porque aqui entre nós tá uma tranqueira dos diabos, esse tempo de tantas despedidas injustas, tantas dores. 

Toda memória pode ser também um tanto de esperança e imaginação para que se façam mais amenos os dias vindouros. E, se Paulão não estará conosco nesse Natal, estará por certo em nossas memórias e, num mundo melhor com certeza, para os que acreditam, como ele tanto acreditava.


Bem diria Paulo: a vida às vezes é só um "chute na canela"...

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