segunda-feira, 22 de novembro de 2021

Eu queria ser feito de música

 

"Onde há música não pode haver coisa má."

                                 Miguel de Cervantes.


A música é arte intrigante. Quando nos fixamos em um ponto, ele já não está... 

É arte do tempo. Arte heraclitiana do movimento das corredeiras e dos rios sempre "outros do mesmo", presente evanescente, revivescente incansável. Voz do impermanente. Daí vem toda sua magia comunicante com as coisas do mundo pelo mover cadenciado dos ritmos que, pelos guias da natureza, nos solicitam... Essas belas cartografias de gratuidades: da natureza das coisas; das coisas da natureza. Porque há, desde o ritmo lento do sol e da lua, dos anos e estações, até o ritmo e o som do bater do coração, das topografias, e na menstruação. Também nas asas de um inseto, beija-flor ou morcego, bem como nas divisões das folhas germinando, ou nas moléculas e fenômenos de multiplicação em escala celular. Ha ritmo nas pandemias, e há ritmo nas ondas, marés e seus marulhos, nas gotas de orvalho escorregando do telhado, o ritmo e melodia dos passos de um cão, da respiração, da marcha de um homem, formiga, elefante ou gato; do canto de um pássaro, baleia ou cigarra, do entortar pendulado de uma árvore pelo vento. Eterno retorno movente,  há ritmo até no mastigar do alimento e cariar dos dentes; música desse leva e traz das tempestades, das mortes e nascimentos. 

Mas, principalmente, há som e fúria em tantos engenhos humanos capazes de integrar as ações de um eu e um tu, realizando-se por um estranho milagre, um nós. Há música na voz e na preguiça. E, se algumas soam mais sonoras, há sempre tramas e canduras. Há música no amor entre duas pessoas que se querem, mas também entre as que se repelem. Porque há música até mesmo na guerra e terror, nos funerais e panelas, nas liturgias e litogravuras, ou na maldade opressora; no trabalho, no vai e vem do sexo de todos animais; há ritmo e música nas refeições, nos ciclos dos impérios e civilizações, nas rezas e cantos dominicais, nas giras, candomblés e carnavais. Há música nos sonhos, essa música em imagens, quadros borrados e até medonhos, de invaginações; mas também na eletricidade, panelas, ruelas, mandalas e nas velas; nos gases, beijos, trovões, sinais de trânsito, modas, nos mercados, capitais, jornais  e nos ciclos medicinais.

Não por acaso, a própria música foi a forma artística mais esquecida sob escombros e ruínas dos povos... Quem sabe o que foi a música persa, asteca, hindu, tapuia, suméria, núbia, ou iorubá de 600 ou 5.000 anos atrás? Isso atordoa e fascina meu juízo de fantasias melodiosas e estranhas aos meus ouvidos... 

E há uma música interior das profundezas do espírito, que sem dúvida também precisa ser tocada. Mas gosto mesmo é dessa galhardia gargalhada gostosa do corpo solto que, quando forma de arte, é dobradiça de mundo. Música é a única coisa quase tão intrigante quanto o silêncio; arte que comunica sem palavras ou descrições primorosas o milagre da vida em acasalamento. Os gregos acreditavam que a música era divina, e daí os pitagóricos extraíram dela toda a matemática. E quem ouve uma música, talvez tenha a solidão curada ao se encontrar no espaço comum de feras, humanos e anjos. Êita que é bom demais esse dengo nas orelhas, barulhinho bem planejado... 

Música é terapia contra a morte precipitada, e a dança, esse “mal” súbito que acomete o corpo emprenhado de afecções dormentes. No princípio não era o verbo, mas a música. A música e a dança, sua fiel escudeira... Deus primeiro escutou ritmo, acordes e melodia de criação... Depois, Deus dançou... E depois, só bem depois, muitos bilhões ou trilhões de anos luz depois, distante lá longe no beleléu após a curva do cansaço extasiado, como quem acabou de fazer amor e, já contemplando o céu povoado de pirilampos que o prostrou, o velho se ocupou em falar com voz grave, rouca e profunda... E espalhou sermões, liturgias e imprecações pelo mundo... Talvez estivesse apenas só e com saudades dos velhos tempos em seu santo ativismo publicitário...

Eu ouço música como um bicho carente que aprende a voar. Como se me tornasse luz de repente, e toda dor e dúvida fossem embora. 

Escutei um dia certa mensagem, vinha voando pelo ar: "não tenha medo, saia daí de dentro e venha brincar." Às vezes fica mais fácil se aumento o volume até silenciar a tristeza, até reverberar em corpo; outras, gosto bem baixinho que nem sibila sussurrando em meu ouvido tal qual vinho velho, longe do alvoroço.

Eu queria ser feito de música! Acho que seríamos imortais se tomássemos parte nessa sinfonia de sons tropicais. Quero que cante feliz, de olhos fechados, a música que cantávamos juntos quando eu me for; a mesma música que já não toca mais, mas que se esconde por detrás lá onde a vida perdura.

Nenhum comentário:

Postar um comentário