sábado, 23 de outubro de 2021

Dia de criança

 

"Em qualquer homem autêntico existe uma criança querendo brincar."

Friedrich Nietsczhe 


I - Infância

A infância não negocia com nada que negue o fluxo da vida...

Bela explosão de micro estrelas, sóis das nossas existências.

E com ela nos lembramos do que já quase nos esquecemos.

Hoje é 12 de outubro, dia de chocolate, brinquedo, cocada e marshmallow escorrendo pelos cantos das bocas...        

Garantam fofamente seus pedacinhos de céu... 

Renovem todas as palavras escondidas na rudeza cotidiana.

Porque alguns de nós foram crianças há tempos. Mas algo da infância, ainda que saudosa e intimamente sabemos.

Difícil lembrar, porque de longe minha infância, sua infância, como nos lembra Manoel de Barros, eram o dizer coisas sem nomes.

Essa abertura da linguagem, nervura com o mundo para todas as possibilidades e impossibilidades de nossas consciências já mais duras... Maduras...

Só sei que em meio à algazarra da casa, eu me misturava à areia do quintal.

Acordava o trovão e minha mãe tremia, orava,  escondia espelhos. Mas eu e meu irmão, a gente corria pras pequenas poças em que rãs e gafanhotos saltavam,

E fazíamos do pedaço de isopor, folha ou graveto, uma intrépida nau de formigas; sementes, adereços descartados e pequenas frutas, bonecos e flores em missão de salvamento, batalha e comunhão mimética entre espécies distintas...

Era assim toda vez que chovia forte e os ralos entupiam, e a cozinha e quintal da casa alagavam. Por vezes aparecia uma pequena serpente, mas sempre havia uma miríade de outros bichinhos saindo de seus esconderijos ora celebrar a abundância da chuva.

Era segunda, sábado ou sexta feira? Era inverno ou verão?

Que me importa?!  Eu tinha o roseiral...

E a rosa era da cor das paredes da primeira casa de que me lembro.

Havia um abacateiro, o único verdadeiro abacateiro de todo o mundo, do qual todos os outros eram apenas pálidas cópias. Imensas mangueiras, goiabeiras, coqueiros entre outras árvores nos terrenos baldios dos arredores... E tb margaridas, arbustos, flores amarelas brotando dos telhados e cantos de paredes de casa; lagartixas e lagartas, borboletas, viuvinhas e passarinhos, bichanos de temporada,  até corujas e pirilampos, morcegos, cigarras, piolhos de cobra e camundongos,  escorpiões, muitas aranhas, e até micos e sariguês eventualmente apareciam nos nossos jardim e quintal.

Não sei se me tornei o homem que minha criança queria,

Mas penso que me tornei o homem que cuida daquela criança que quase deixei morrer por descuido.

Lembro de joelhos humanos; as pessoas eram feitas de imensos joelhos, e que algumas vezes minha cama amanhecia molhada cheirando miraculosamente a xixi. Quem teria feito aquilo comigo? E por que? A única explicação plausível é que as camas daquele tempo tinham necessidade de urinar nas pessoas durante a noite...

Lembro de chorar pra largar o bico – chamava kekeko...

Minha mãe passava horas sentada na máquina de costurar,

E o ritmo das suas pedaladas era canção de ninar.

Quando sozinho, tinha medo de algo a que chamavam Deus me observasse intrometidamente  numa relação tóxica com meu corpo e desejos. Comecei a entender que era isso que denominavam consciência.

Penso que foi Deus que de tanto me espionar me obrigou a desenvolver esse órgão estranho,

Ao ponto mesmo de já não importar se ele existe ou não.

Perdi a batalha... O monoteísmo venceu! Só me restou a guerrilha selvagem... Resistência nas trincheiras, guerra do tempo do nunca, do dizer não...

Mas bem antes, mal sabia que vivia uma fábula digna de Monteiro Lobato, mal sabia que a roda da vida me observava, em folia de seres e encantamentos...

E pela roda da vida nos movíamos todos nós.

Que algo me tornava a um só tempo único e comum, sozinho e com todos.

Por isso é feliz e bonito, mas um tanto nostálgico se ver as nossas crianças de hoje.

 

II – Vida e resiliência

Não tive filhos, mas pets e sobrinhos a quem entreguei meu amor paterno.

Não há sobras no tempo. E essa criança que trago vez em quando me protege, vez em quando sou eu que a protejo..

A infância é o melhor remédio contra o temor da morte...

Onde encontramos os fluxos do impossível em delicadas braçadas,

Numa terra por vezes dolorida, mas sempre reencantada por sopros curativos nas feridas,

Medicina ancestral infalível que asperge amor - quando se foi criança amada.

Não adianta, só podemos adiar um pouco nosso próprio esquecimento e provisoriedade

Como cultura e verdade de uma época; adiar nosso lugar entre as ruínas de um tempo que os seres do futuro não compreenderão.

Mas quando uma criança brinca, é quase como se meu corpo brincasse com ela, mesmo que eu esteja apenas observando.

E só nos resta aceitar nossa provisoriamente  no tempo presente.

E nos presentear com o agora do ser.

Geralmente sentimos que a visitante, a monogâmica morte nos chegou cedo,

E queremos mais um dia, e mais outro talvez com todos os demais.

Mas a morte não existe para o morto,

E a vida já tem boletos demais para pagar, coisas demais a fazer, para nos preocuparmos tanto com o que não nos pertence.

Se não controlamos as coisas quando presentes, o que pensar do que será quando já não mais?

Oh doçura e travessura de vida, combater e lutar a boa luta, desejar até o fim...

Que delícia e gostosura de mundo... Quero mais e mais esse até o fim...

Que a criança amada a balançar os braços não sinta medo; que haja Amoras e avelãs aos milhares; qual flor delas Divas belas,

Valem o tino que atina pra mandar Ninar nossas tardes douceradas desses deuses Teologais, lindos  e amados animais mortais...

 

Lembro que quando criança, minha timidez perante os estranhos na minha casa em São Caetano era compensada pela curiosidade de tudo,

E um broche de plástico achado enterrado no quintal valia feito diamantes.

Se pudesse escolher um tempo do  eterno, jamais abandonaria minha infância,

Porque também ela já me parece um tempo eterno, um quase lugar; aparente não movente, mas já que eterno fluxo inconsciente.

Em que coisas e gentes não se separam, e a natureza e seres se dão presentes.

É quando, na pequena cidade do interior, fiz de minha infância esse gosto de fruta roubada.

Agora, todo o medo do fantasma da morte, espanto-o com crianças, ungüentos e feitiços da vida!

 

III - Morte

Meu maior medo não é de morte, mas de vida insuficiente, vida sem significado,

Dum fim anunciado, malfadado e cheio de remorsos.

Temo viver sem me entregar a beleza do que transforma

Essa realidade esmagadora em outra coisa; ao que cria e se apropria do mundo sem lhe por rédeas e regras, mas as tirando todas.

Minha rebelião contra a morte não se dá negando-a ou enganando-a, mas somente não sendo mais um que resiste à vida.

E eu juro que observei atentamente, nenhum dos que se foram voltaram jamais... Nenhum dos insubstituíveis, muito ricos ou membros honoráveis de qualquer clube respeitável...

Nenhum deles se alevantou de debaixo da terra como num filme de zumbis...

Mas se me fosse possível um pequeno e último pedido,

Gostaria apenas que os que não estiveram de fato comigo em vida, essa vida já cheia de obstáculos,

Que não desperdicem seu tempo nem o que me restar.

Que por favor, se algum dia me tiveram a mínima consideração, não me façam visitas em hospitais para reparar culpas e maus sentimentos, ou para me pisotear às custas da minha dor – isso talvez acelere minha enfermidade e morte.

Para esse tipo de visita de estranhos, aceito apenas: Chico Buarque, Cindy Lauper , Shakira, Juliette, Paul Mcartney e crianças – Gregório Duvivier pode rolar também... E com certeza ele faria boa piada desse convite mórbido...

Muito menos, partilhem da derradeira despedida.

Por favor, não gastem seu tempo, e a boa vontade minha e dos que de fato me amaram, dos que me importam, indo ao meu funeral;

(E se não restar nada como a alma, como eu acredito que seja, pelo ao menos respeitem minha memória e não profanem ou contaminem a partida)

Se quiserem amem-me agora, e atirem amor sobre esse meu corpo vivo.

(Bem melhor que flores sobre o silêncio vulnerável do morto)

Somente me abracem e chorem comigo no tempo do agora... Sejam a criança que foram, novamente nesse agora. E amem como se só houvesse o presente. Não me dê mais nada. Esse é seu melhor presente. Amem mais, e deem menos améns igreja... Esse chorar pitangas e fazer orações à segura distância, é o receituário dos covardes, dos hipócritas.... Amém igreja!?

Quando eu já estiver morto,

Abracem... Um cão, um gato, uma árvore,

Ou um bife mal passado.

Quem nunca soube ou se interessou por minha música amorosa em vida, como saberá de mim em morte?

Não temos nada a perder, somos  minúsculo fragmento entre bilhões  que já se foram, e bilhões ou trilhões que perecerão;

De acordo com a certeza implacável do tempo, todos nós já não estamos, no final das contas, mortos?

E todos os seres do mundo temem a violência e a aniquilação,

Mas nem todos agem igualmente diante disso: há quem grite, outros retrucam, há os que se amoldam, os que retribuem ou revidam, fogem, paralisam, e há também os  que morrem antes...

E talvez o suicídio não seja afinal negação da vida,

Mas uma tentativa desesperada e deturpada de se controlar a vida que o suicida ainda possui, Uma triste afirmação de um fraco poder.

Por que tanto medo e apego a essa banalidade?

O que nos resta, como se diz, é fazer planos para uma vida longa, e vivê-la com a intensidade de quem tombará antes de se abrir a próxima porta.

Porque a vida é vivida diariamente sem boas rotas de fuga,

Da morte, como se diz, escapamos todos os dias em que continuamos vivos, até vivê-la num brevíssimo instante.

Meu desejo é não morrer antes nem depois, mas no momento devido.

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