domingo, 24 de outubro de 2021

Da ingratidão, ou como dizer obrigado sem ser obrigado



Diz o Salmo 30: "Exaltar-te-ei, ó Senhor, porque tu me exaltaste; e não fizeste com que meus inimigos se alegrassem sobre mim."

"O dinheiro não tem ideias."
Jean Paul Sartre


O dinheiro cria a ilusão de que fomos dispensados da gratidão, de que se trata de artificialidade autointeressada apenas, fingida quem sabe. Algo que só fazia sentido quando ainda pensávamos que o mundo era decidido e ordenado absolutamente por deuses, e humanos semelhantes à deuses na terra, ou seus representantes.
Assim, uma vez que todas essas crenças se enfraqueceram, e uma vez que tenhamos pago pelo novo mundo que construímos, e tendo convertido todos os valores desse novo mundo em preco materializado em papel moeda, será  que nenhuma gentileza ou consideração se faria mais necessária? Sera que a gratidão só subsiste em redes relacionais autoritárias, patriarcais... Será mesmo que não haverá um "custo operacional" muito mais profundo que, se perigosamente desconsiderado, nos cobrará alto preço nesse caminho, acaso o levemos até as ultimas consequências?
 
Era esse o tipo de coisa em que muitos dos pensadores entre o século XIX e o XX se entretinham. Mas será que o enigma já foi solucionado?

Será que de fato o dinheiro, papel moeda tão disseminado quanto necessário num mundo mais desencantado que os dos séculos precedentes, mundo agora feito por e para tantos anônimos dependentes uns dos outros, também não pode vir a se tornar terrível máquina de esquecimentos e adiamentos de consideração, carinho e mesmo confortos a que deveria servir, como bem percebeu Marx ao seu modo em seu tempo?
Esquecemos do tempo – e, sobretudo, qualidade de tempo - gasto pelo professor na sala de aula, pelo agricultor que trabalha a terra, por aquele que faz a máquina e o carro, e o que transporta todas essas coisas; além dos que as entregam pra nós em balcões de mercados, ou mesmo até na porta de nossas casas; pra não falar dos que constroem nossas habitações, roupas, adereços, os que nos fornecem sons e flores, os pets lindos que adoçam nossos dias; ahhh, e o quanto dependemos dos faxinadores, dos que descartam o lixo, das pessoas que enterram nossos corpos mortais, das que fazem nossa segurança, dos carregadores, corretores, esmerilhadores, porteiros e policiais, dos mergulhadores e caçadores de minerais que tanto se arriscam, dos que lavam a bosta em algumas de nossas privadas e fossas, ou lavam nossos corpos quando enfermos, fazem nossa comida muitas vezes, ourives, orelhas e oleiros, ferreiros e marinheiros e marceneiros, pescadores, artesãos; os que criam medicamentos e vacinas, e tantas vezes tão mal pagos... 
Todas essas pessoas nos liberam tempo para fazermos outras coisas, ou nos "consertam" esticando o tempo, para que voltemos a fazer coisas que gostamos, queremos ou necessitamos. Assim propiciam nossos curandeiros de corpos e almas; esquecemos facilmente das infinitas transições e conexões necessárias realizadas sutil e silenciosamente por tantas e tantos, somente para que um simples vinho, nem que seja o mais barato, ou copo de água, ovinho de galinha, codorna ou Páscoa, fita de papel, absorvente, detergente, óculos ou dossel cheguem – e seus resíduos poluentes abandonem - a nossa casa. Quem dirá, coisas como eletrodomésticos, computadores, celulares, livros, prensas e furadeiras...
 O dinheiro, como às vezes se realiza e justifica em nossa sociedade, é  sintoma de uma ingenuidade egoísta. Senão, um tipo de Alzheimer coletivo...
Não aceito que, em nossa época, agradecer seja logicamente impossível, contraditório, ou no máximo somente formalismo estereotipado; polidez vazia ou hipocrisia, ou que, se no passado só resistiria como reverência e respeito meio que temeroso pela autoridade, no presente, ossificaria disfuncionalmente em bolsões resistentes à mudança... Só por teimosia...
Ao contrário, penso que nos dias de hj a gratidão e a lealdade, a confiança cumpram papel crucial para além do estritamente privado. Trata-se de um jeito de nos lembrar: eu dependo de você, assim como você e eu dependemos de outros, que por sua vez dependem da gente. É assim em todas as sociedades complexas como a nossa. 
O  neoliberalzinho de botequim talvez pense diferente, e ache que isso é opressão do Estado e sociedade malvadões, prejudiciais ao seu sagrado direito de foder a vida alheia como bem entender sem ser punido por isso, e chamará isso de comunismo. Mas será que o que ele gosta mesmo é de liberalismo, ou de escravidão para os outros, e liberdades pra si? Sadismo!? 
Pois certamente que nos tempos das escravidões e servidões do passado, assumir a dependência significava admitir uma inferioridade, submissão e obediência para com o mais forte numa ordem patriarcal violenta, sem que  ninguém ou quase pudesse interferir. Tempos em que as elites andavam com um crucifixo na mão, e a chibata na outra!
Hj, claro que persistem muitas relações terrivelmente desiguais, mas a coisa já não é mais tão simples. Aliás, quem inventou o Estado e esse tanto de leis, regras, especificações especializadas e normas como as conhecemos não foi Stalin nem Mao, Hitler ou Mussoline, mas a burguesia. E o sentido de "Depender", a partir daí, passa a ser cada vez mais, em contextos de pacificação interna, duplo vínculo que se realiza em reconhecimento recíproco. 
Foi Hegel quem mais claramente primeiro entendeu isso, e Norbert Elias quem conferiu o sentido contemporâneo mais interessante que conheço, para esse fenômeno sociopsiquico. Que a linha corria Tb do mais forte para o mais fraco. Sem isso não há civilização ou democracia. Essa reflexividafe funda a modernidade.
O Brasil, esse país com uma das maiores, senão a maior concentração de renda do mundo, país feito sob medida "por" e "para" rentistas ociosos, parasitas do trabalho alheio, só completará o ciclo da escravidão quando compreendermos coletiva e profundamente isso: que gratidão não significa obediência, que dependência não significa submissão que humilha; e Tb, que é  o trabalho o que nos sustenta, que gera riqueza, não o orgulho, superioridade, elegância, violência ou ganância, ou mesmo a “generosidade" da classe dominante ou qualquer cor da pele, gênero, sexo ou condição; orgulho do patrão que carrega consigo a certeza de que nasceu pra mandar; que não deve satisfações a mais ninguém que não a Deus, e olhe lá... 
Nada disso nos salvará desse puteiro - com todo respeito aos verdadeiros puteiros... Essa oligarquia pensa que dominar é adquirir o direito de não se submeter mais a lei, de não dar satisfações. Pra ela, "cidadão" é palavrão contagioso... Essa gente odeia o Brasil! Essa gente odeia pobre, essa gente só tem amor por si, e malmente pela própria família.
Descobrir que a gratidão, em sentido de  vínculo sensível mais profundo, honorifica e sustenta o sucesso duradouro, inclusive dos formalismos positivistas e liberais dentre todos, convencer sobretudo os  econômica e politicamente superiores não é  fácil,  talvez seja mesmo impossivel, e um texto assim me faz parecer bobo, ingênuo, ou até mal 8ntencionado diante da complexidade das lutas históricas de que temos ciência... Eu tenho consciência disso. Sei que  não é  fácil perceber que, mesmo sendo atribuição básica de todo aquele que se pretende elite diretora de um coletivo em tempos de democracia, o jogo de poder é mais complicado e renhido, muito mais... 
Mais difícil ainda levar essa consideração a sério sem transformá-la em meio de manipulação, tecnologia instrumental para se explorar mais e mais a boa fé do outro tantas vezes premido entre as velhas e as novas moralidades - e imoralidades. Ao menos até que a revolução varra do planeta todas as formas de vilania... Ainda precisaremos de algo do tipo.
Eu dependo de vc, vc depende de mim, e eu sei que mesmo que em dada situação eu venha a ser o mais forte, vc ainda assim é livre, até certo ponto, claro, livre para abrir mão  do vínculo que estabeleceu comigo, e travar relações materiais, cognitivas e afetivas com quem lhe apetecer ou for conveniente. E que eu tenho a perder com isso, e não apenas vc. A selvageria começa quando considero que meu maior poder diferencial autorize minha descarga emocional desimpedida em sua direção.
Gratidão aqui não perde, mas só ganha em importância. É dizer: vc importa! Lembrarei de vc... Agradeço por ter, entre tantos, me escolhido ou feito algo que tornou meu dia melhor. Agradeço, porque é fácil se esquecer que somos livres, e que por isso os vínculos precisam ser cativados por uma decisão que, só nossa, só se realiza plenamente, só se completa, quando tecida por ambos os lados. 
Ninguém nos obriga, muito menos a dizer: “muito obrigado”, “fico feliz”, “que bom que tenho você “, “não sei o que seria de mim sem vc", “você é  dez", ou “eu te amo”. Todas expressões tão belas quanto descartáveis, ou mesmo dispostas à manipulação irresponsável. 
As vezes ficamos confusos quando as escutamos... Mas não deixemos de utilizar muitas delas inclusive nos balcões dos mercados, com os anônimos que sem nos conhecerem ou dependerem de nós pra nada, direta e exclusivamente, tornam nossa vida melhor. Sermos gratos pela vida é  só um reconhecimento do quanto somos mais um dentre tantos lutando por viver e conhecer tanta gente especial, é  uma forma de nos lembrarmos de nossa finitude, e de enfrentarmos nossas sombras e delírios de grandeza, a não ser quando começamos a nos achar superiores pela vida que nos foi dada... E esquecemos que não temos controle de nada...
Queria que minha vida fosse feito uma árvore de Natal com presentes pendendo numa listinha de destinatários queridos. Ainda estou longe, muito longe dessa grandeza, mas não descuido da meta. Por ora, faço o pouco que posso, mas me esforço. 
Não percamos o “muito obrigado”, expressão tão velha, que nos lembra um velho significado muito mais violento, exterior, mas que já não perdura. Não somos mais obrigados a dizer obrigado, e é isso que confere seu imenso valor quando o dizemos. E não sei se há virtude nos ingratos. 
Mas sei que a vida precisa de colo e café coado com canela,  isso é apreciarão verdadeira. E sei que quem nunca recebeu, não saberá como dar; nem entenderá, quando receber, que estará a partir de então “obrigado”, sem que ninguém possa, ouse ou queira obrigar ou cobrar a dívida. Essa dívida do coração, não da matéria bruta, útil, funcional inerte sem vida,  é o tipo de dívida que busco aumentar a cada dia, dívida em que os juros tem outro nome: a gente chama saudade. 
Os que cospem no prato que comem, e apunhalam pelas costas aqueles com quem acabaram de comer à mesa talvez simplesmente sejam ocos, estejam apodrecendo. Eu, tento ser grato até mesmo aos que me fizeram mal, grato até por certas tragédias da vida, por merdas inacreditavelmemte sofridas, e até algumas cometidas. O quanto não cresci por isso? E o que não seria da história humana sem os ingratos...  Os traidores, a perfidia?! 
Não haveria tragédia nem comédia, pra começar. Literatura e arte seriam uma chatice... E os deuses então, viveriam todos ociosos e sem maiores oferendas.

Nos diz a oração: "Obrigado pelas desilusões elas me ensinaram que não devo colocar todo o meu coração em nada que existe aqui na terra e que fazendo isso sofrerei menos quando algo não der certo (...) Obrigado também pelo anoitecer ele me faz lembrar que tudo nessa vida é passageiro e que nenhum momento da vida seja bom ou ruim durará para sempre..."

O que seria do cristianismo sem o ressentimento? E da correlativa crença, por vezes bastante fantasiosa, de que outros nos invejam e querem nosso mal pelo que temos, sobretudo os malvados pagãos e feiticeiros, os anormais e bodes expiatórios de todas as épocas... Quantas vidas, algumas verdadeiramente miseráveis ou ao menos medíocres não se sustentaram somente por crer nisso!?
Aliás, a cena de traição mais conhecida e revolucionária do “ocidente” começa no oriente, com um invejoso traidor se alimentando em celebração, confraternizando na mesma mesa ao lado do deus-filho, irmão de caminhada e destino. Beijando sua face tão íntima quanto sagrada; a face daquele que será entregue em troca de um saco de moedas; dinheiro vil, podre, pelo qual se comprou a sorte do Deus que resignado sabe que será humilhado, torturado e crucificado; cordeiro morto consumido em ritual, para depois, só depois de cumprido o longo roteiro de martírio, ressuscitar para nos salvar e, enfim, ser exaltado... O que seria do cristianismo sem Judas? Esse que suicidou de remorsos... E se Jesus tivesse fugido... 
O que seria de nós aqui na Bahia, sem moquecas e ovos de Páscoa!? 😱
Aqueles curtos acontecimentos modelaram os últimos 2022 anos de nossa história; o suplício do corpo do cordeiro, carpinteiro-pescador que andava com vestes simples e pedindo esmolas entre putas, leprosos, sofredores; mas também cegos, ladrões, sacerdotes, aproveitadores, bêbados, coxos, covardes, hipócritas e ingratos; entre gentes carentes, dóceis e de bom coração, mesmo que por vezes brutas como era Pedro, gentes dentre os mais pobres e comuns na Galileia.
Amém igreja!
Pois o cara que mudou o mundo mal "valia" um saco de moedas...

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