sábado, 16 de outubro de 2021

E por que não escreveria?


Eu tinha medo da poesia!

Meu monstro civilizador: bem alimentado, mal fosforescente sobre a pele.

A queria minha, poesia, mas tremia feito em febre do rato quando perto.

Eu temia que ela me revelasse pequeno.

Diz a escola:  a poesia é parágrafo a parte no de profundis do ser.

(Naturalmente, o "comum dos homens" nada saberá sobre ela, já que "nada" sabe sobre o ser?) 

Poesia: excentricidade adolescente para amadores de temporada; recheada de clichês!?

E quem ainda quer carregar o fardo do ser profundo?

Escola às vezes é  máquina de afastamentos. Poesia, máquina do tempo, encurtamento de lonjuras...

Na escola ficamos com a xepa dos instrumentos. "E lá se vai mais uma empilhadeira de tropos poéticos, resina de rimas cadentes; fuligem de métricos..."

E na poesia dos reconcilios há até papos com mortos.

Seria eu um Kardec literopical? Escolhido merecidanente para tão nobre e mal pago hábito? Seria suficientemente elevado, hábil, nostálgico e espiritual? 

Quem honrará a poesia do mundo conforme o canto do poeta profundo? 

(Não sei o que seja um poeta profundo)

E tive tanto medo do rotundo, que me borrei de letras pela ponta da esferográfica.

Eu, animal miúdo saído porta da escola de volta pra casa;

(Que belo tropeço de cara na pintura!)

Introvertido, quebrei a face do descontentamento na face do “outro" moldura.

Caminhei por não contadas horas entretido na rua alheia de unguentos...

Uma sombra de mim se assenhora; quem sabe a medonha me bate a porta das horas?

A rua era nova e sem postes ou pontes, sem pavimentos, placas, traves ou escoras. 

Precisei, preciso, precisarei! 

Escrever! 

Alumiar a pegada das coisas.

Escrevo porque acontece um ruído...  

O silêncio, excitação muda no que se quebra.

Ninguém vai lá perguntar à aranha porque tece a teia... Ficaríamos intrigados se de repente ela desistisse, ou pior, replicasse: "Teço pois é  minha vocação", ou então: "porque gosto, e preciso comer..."

Há uma guerrilha denyro do meu risco, 

E esse medo da beleza me fez por tempos ler poucos poemas. Ou ler como se fosse ritual sagrado em segredo, perigosíssimo se mal executado.

Mas a boa poesia é arte de quem sem peias não se conforta à violência dos monopólios, oligopolios, trustes e lobies decadentes... 

Mal sabia, a fonte e a fome eram de todos; de toda vida e farsa...

Sei um pouco, mas muito pouco mais que outrora,

Quanto mais consinto a dor e a delícia de outros. 

A dúvida também me apavora!

Talvez a poesia seja hoje dom de bardos deserdados, .

Já eu, gostava de pensar como Pessoa: o poeta era um fingidor!

Mas até aí vai nada bem, já que eu mesmo me enganava. 

Eu, que escrevia querendo a verdade escondida na alma.

Mas a verdade poética não se esconde, é relva sutil e dispersa ainda por ser recuperada, 

Terra aberta que se cativa com afago, 

Não pela força do ego violador.

A poesia não existia pra mim antes da dança;

Eu não existia antes de dançar com ela... 

Mas a vida é maior que o texto, maior que o quebrar do vento;  texto precisa "se esforçar" pra não fracassar copiando a vida; 

A poesia mais parece vida com vida em outra cor ainda não nascida. 

Corte costurado pela flor sem nome.

A música já tem seu direito ao movimento, só por ser música. 

A poesia tem de conquistar a heresia na contração de verbo-dentro-da-boca;

Quebra num salto o ar, trazendo de volta a melodia esquecida.

Minha primeira poesia foi sobre formiga e nuvem, e ainda não carecia de palavra.

Minha segunda, sobre o amor. 

Queria que a mulher santa e desejada soubesse o valor do amor despedido.

Pra que ela me amasse devidamente desesperado;

Queria que quando lesse meu desespero-poema, o amor despencasse a primavera... 

Mas isso "era" eu, não sou mais... Isso era eu, não era ela...

Minha terceira poesia foi sobre morte e primavera.

Hoje pouco se lê poemas,

E há mesmo reticentes fascínios; 

Adoração e incompreensão impacientes diante do poeta morto.

E para o poeta vivo ainda pior: talvez esteja mais morto que os mortos jamais puderam estar...

A um só tempo indispensável e obsoleto...

Há frases - quando há- no Insta bem mais curtas e proativas para as esperanças dos seres aligeirados,

Que as frases angustiosas de poetas densos, lentos na peleja...

Envolvidos nos dramas do mundo.

Poesia agora é "coisa de velho", lugar comum dum sublime esquecido.

E há quem diga: guardiã da memória ainda não feita história.

Se o for, que desastre o de ser a maior esquecida;

Esperança que morre, levando consigo todos demais defuntos sem glórias...

Ah, esse labor duríssimo de buscar palavras 

Num penoso recinto,  nevoento leva e traz incômodo de mundo;

Labor tantas vezes ocioso de pedantismos. 

Por favor, que ninguém se puna por não sentir “certo”... O manual dos sentimentos está sempre em aberto.

Não se culpe por não estar de acordo... 

A poesia ama os "desacordados"... Pior é não sentir...

Poemas são feridas e encontros, ou encontro do qual não se sai ileso.

Com quais palavras poderei dizer "Te Amo"? Com quais escutará? Como direi do seu jeitinho tão seu; fazendo com que me entenda, mas que também não me entenda letra por letra jamais?! 

Qual extravasamento quieto deixarei feito ranhura, ou entre rachaduras duma ruína desbotada? E qual criança buliçosa poderá por ventura fundar seu próprio esmerilho? 

Escrever, escrever!  Para uns, pode ser vital...

Estamos sós, e a poesia que é memória, no tempo do agora escarafuncha a solidão que faz lembrar do esquecimento de tantos e tantas coisas.

As vezes, só por dizer, morria e ressuscitava  em nervuras. 

Se palavras matam e adoecem, elas também dão a vida que aquiesce. Ou pelo ao menos dão  dignidade ao perecer. 

(Nascer e desnascer... )

(Lembrar para esquecer)

A poesia desperta um animal ferido, fofo e virulento, 

É um encontrar no deserto o jardim das delícias e espinhos todos juntos e misturados. Alguns, malditos...

Dizer morte pra quem sabe não matar.

Quase tocar o dizer o não e o mal... Se têm palavras ao chão na disposição pra se perder.

Poesia, arte do impossível. 

E a arte, se for o caso, deveria causar medo apenas no opressor, não no oprimido! 

Deveria libertar!

O poeta esteve na borda de tudo e olhou pela janela,

E amou, e odiou;

Fez artesanato do que encontrou, pedaço a pedaço desse presente ingrato:

Do mundo se curam leitor e poeta em recitario.

Em minha defesa digo: tentei modelar com mãos hábeis o amor.

O poeta perdeu o bonde e ainda não sabe.

Esse lembrar das culpas sem se tornar culpa,

E escrever, porque escrever  com o mundo é uma ordem sem rumo,  sem ninguém que ordene.


Talvez a melhor forma de fazer maior a nossa poesia seja desistir de ser sua medida.

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